O que primeiro chama a atenção em
um filme de John Carpenter é a fluidez de sua narrativa, a precisão da sua
composição de imagem e a fé num cinema antiliterário que se coloca diante de
seu público simplesmente como imagem em movimento. Isto tudo ele foi buscar
numa tradição de cinema americano praticado por Don Siegel, Samuel Fuller e,
sobretudo, Howard Hawks. Um cinema cada vez mais incomum de se ver em qualquer
lugar ("eu nasci com o timing errado", reclama um personagem em Assalto à 13 DP).
É Howard Hawks em especial que acabará servindo de inspiração para
a obra que Carpenter vem desenvolvendo desde meados dos anos 70. Dele vem muito
do estilo (a famosa direção invisível) e alguns dos temas que Carpenter retoma
ao longo de seus filmes. Um mestre tanto nos filmes de aventura (Hatari), screwball comedies (Levada da Breca),
faroestes (Rio Vermelho) ou policiais (Scarface), Hawks talvez
seja o único cineasta que trabalhou com sucesso em todos os gêneros que fazem
parte da tradição do cinema americano.
Dentro de uma obra tão rica, onde os filmes dialogam de tal
maneira uns com os outros que se torna difícil destacá-los individualmente,
dois deles, Onde Começa o
Inferno (59) e Hatari (62), talvez possam ser vistos como
filmes-sintese. Será justamente Onde
Começa o Inferno que
Carpenter buscará com mais freqüência como ponto de partida para seus filmes.
Neste faroeste o xerife John T. Chance (John Wayne) tem que defender a
delegacia de um numeroso bando que tenta salvar um criminoso. Mesmo em
desvantagem ele recusará ajuda, mas acabará recebendo-a
do mesmo jeito. No fim, põe a amizade pelo alcoólatra Dude acima do emprego, e
arrisca-se a perder o prisioneiro para salvar a vida do amigo.
Daí nasceriam duas das características que marcam toda a obra
carpenteriana: uma ética da relação com o outro e a necessidade de um grupo de
pessoas se unirem quando colocadas diante de uma adversidade. Ambas já se
insinuavam em Dark Star,
estréia amadora de Carpenter, e se mostram com força total já em Assalto à 13 DP (76). Carpenter situou sua homenagem
assumida a Onde Começa o
Inferno numa velha delegacia
semidesativada (ela está sendo transferida para um novo local), onde um
policial novato, que cresceu nas imediações, terá de defender um desconhecido
homem catatônico de uma interminável gangue, com a ajuda de dois prisioneiros e
uma secretária. Rodado num momento em que Hollywood ia abandonando de vez este
cinema classicista e preparava-se para entrar na era da superprodução, o filme
reflete este momento de forma crítica. Contemporâneo de outros filmes com
objetivos semelhantes como O
Ultimo Pistoleiro de Siegel, No Mundo do Cinema de Bogdanovich e um pouco depois, Fedora de Wilder, a diferença é que Carpenter
dialoga com este momento fazendo um filme no espírito de Hawks -- direto e a
primeira vista sem grandes preocupações.
Não é a toa que mais do que em qualquer outro de seus filmes, emAssalto
à 13 DP as relações humanas
se definem sempre através do olhar, mas também pela ação -- já que como num filme de Hawks, é
o que os personagens fazem e não o que dizem (ou se diz sobre eles), que
definem quem eles são. Será através de um olhar que o criminoso Napoleon Wilson
primeiro desconfiará que há algo que diferencia Bishop dos outros policiais que
ele conheceu, mas será pelas suas ações que Bishop confirmará isto, salvando
por duas vezes os prisioneiros, que outros não se preocupariam em salvar.
Também será através da ação que Wilson, de quem se repete sempre se tratar de
um prisioneiro perigoso a caminho do corredor da morte, provará seu valor ao
assumir em igualdade com Bishop a liderança e a responsabilidade dentro da
delegacia sitiada. Por fim, será outra troca de olhares seguida de uma ação que
Bishop ao recusar algemar Wilson e a convidá-lo a sair lado a lado com ele,
como um igual, devolve à dignidade ao prisioneiro e agora amigo, um momento
hawksiano que não deixa de ser carpeteriano.
Assalto também
desenvolve outras duas características carpenterianas que me parecem ter
surgido com Hawks. A primeira é a dos personagens postos à margem da sociedade,
localizados numa delegacia desativada de uma região de Los Angeles tão abandonada
pela polícia local que esta não consegue localizar onde está ocorrendo o
tiroteio do qual receberam diversas chamadas. Hawks gostava de colocar seus
personagens como expatriados (como esquecer a verdadeira legião estrangeira de Hatari?), fechados em grupos
específicos (os pilotos de Faixa
Vermelha 7000) ou simplesmente perdidos num mundo que não conhecem (Cary
Grant em Levada da Breca).
Carpenter, ele próprio umoutsider, parece compreender esta
característica como ninguém, transformando-a num sentimento de deslocamento e
principalmente numa idéia de que as personagens precisam se unir e agir pelo
que defendem.
A outra é a conjugação de gêneros cinematográficos. Hawks é o
diretor que fazendo um musical ou uma ficção científica/horror os transforma
primeiro num filme de Howard Hawks (e já não era Onde Começa o Inferno, além de
um faroeste, uma comédia, um romance e um drama sobre alcoolismo?). Carpenter
na aparência acabou ligado a um nicho de filmes de horror e/ou ficção
cientifica, mas basta uma olhada atenta a eles para se notar como ele trabalha
diversos gêneros em um filme só. Assalto
à 13 DP é um filme policial,
mas tem elementos do faroeste e dos filmes de horror; o novo Fantasmas de Marte (que retrabalha e aprofunda a relação
Wilson/Bishop) mistura ficção científica, horror, faroeste e filmes policiais.
O seu único remake oficial de um filme de Hawks (O Monstro do
Ártico, na verdade apenas uma produção de Hawks, mas cheia de sua
personalidade), O Enigma do
Outro Mundo leva muito do que
Carpenter absorveu das relações humanas de Onde
Começa o Inferno para uma
discussão que me parece nortear muito da filmografia posterior do diretor. A
crescente dificuldade das pessoas em confiar uma nas outras, refletida nos doze
homens às voltas com um alienígena imitador (este uma presença constante nos
filmes seguintes do diretor). Um filme amargo, mas esperançoso, muito incômodo
na forma como implica o espectador no que narra. Dois anos depois o mesmo
alienígena imitador reapareceria emStarman, mas ao invés da destruição,
assumiria o corpo de um homem morto e em sua trajetória finalizaria o que o
homem havia deixado pendente.
Seria limitador reduzir a influencia de Hawks em Carpenter apenas
aOnde Começa o Inferno (assim
como é limitador ver a obra de Carpenter como uma mera releitura de Hawks).
Mesmo Snake Plinsken de Fuga
de Nova Iorque, à primeira vista o menos hawksiano dos personagens de
Carpenter, não está muito distante do aviador durão feito por Cary Grant em O Paraíso Infernal que no fim chora a morte do amigo.
Afinal, quando Snake é posto diante do presidente não é por si, mas pelos que
morreram na tentativa de salvá-lo, que o anti-herói pergunta. A construção de
uma obra coerente e de grande respeito pelo que é humano, talvez seja o grande
legado de Hawks a Carpenter.
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/35/carpenterhawks.htm)
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