Moonrise Kingdom, de
Wes Anderson (EUA, 2012)
Há
uma dimensão francamente política no cinema de Wes Anderson, que só parece vir
às claras neste Moonrise
Kingdom. Política, pois, em época em que se tornou comum anular o
mundo concreto em abstração, seja pela conceituação como fim ou pelos delírios
da pura fantasia, a manipulação extrema que Wes Anderson dedica a cada pequeno
detalhe de seus filmes (os melhores e os piores, indistintamente) vai pela via
oposta: em vez de filmar o mundo tal qual uma casa de bonecas, filmar uma casa
de bonecas como se ela fosse o mundo. Essa impressão já ficava clara nas
maquetes gigantes que surgiam a partir de Os
Excêntricos Tenenbaums para, junto com as caminhadas em slow motion, nunca mais
deixar a obra do diretor. Seja a casa da família Tenenbaum, o navio de Zissou,
o trem que vai a Darjeeling ou a toca de Mr.Fox, os universos cênicos dos
filmes de Anderson são esquadrinhados, desdobrados feito um livro infantil que
encontra efeito tanto em sua estrutura pronta, quanto no devir de sua própria
montagem – reforçado pela sinfonia decomposta na trilha-sonora que abre e fecha
este novo filme.
Moonrise Kingdom começa de forma parecida, com um disco na vitrola, uma casa aberta ao meio e as pessoas, por ali, cada uma em seu cômodo, fazendo sua parte da coreografia. Até aí, nada que não soubéssemos antes. Mas Moonrise Kingdom assume sua dimensão política trazendo para o primeiro plano uma característica que sempre esteve no cinema de Wes Anderson: se suas crianças se comportam como adultos, é porque seus adultos se comportam como crianças. Aqui, essa proposição é levada adiante, até torcer o rabo e mudar diametralmente de posição no espaço. Os jovens Sam (Jared Gilman) e Suzy (Kara Hayward) não só formam o único casal realmente feliz do filme; mais ainda, a convicção de que devem ficar juntos, aconteça o que acontecer, expõe a fragilidade de todas as relações ao redor. Wes Anderson filma a casa de bonecas como um mundo, pois por meio disso ele pode chegar a uma outra constatação fundamental: este mundo que todos levamos a sério, ele sim é uma casa de bonecas, um divertimento, uma bobagem que assumimos como dignidade cotidiana. Isso rebate inevitavelmente nas instituições: mais ridícula do que a lei, só a maneira como os adultos – advogados, policiais, assistentes sociais ou, piada das piadas, chefes dos escoteiros – se comprometem a segui-la independente de como o mundo se apresenta diante de seus olhos.
A inversão que revela a inversão é justamente o que faz deste Moonrise Kingdom, com toda sua leveza, uma obra tão mais eloquente do que bastiões das alegorias juvenis como “Animal Farm”, de George Orwell, e “The Lord of the Flies”, de William Golding – títulos que nos recebem à porta quando chegamos no acampamento de rapazes do filme. Embora a literatura infanto-juvenil seja referência flagrante no trabalho de Wes Anderson, seu toque está muito mais para J.D. Salinger do que para Orwell ou Golding. Por mais que o nome de Salinger tenha sido evocado de maneira muito justa à época do lançamento de Os Excêntricos Tenenbaums (tão justa que até o nome Tenenbaum é tirado de um conto de Salinger, o primoroso “Down at the Dinghy”), em geral faltava a percepção de que o interesse compartilhado entre os dois autores está em descobrir como a ourivessaria da techné pode revelar a falta de sentido do mundo por meio de epifanias (imagem-chave da obra de Salinger: uma discussão interrompida em um engarrafamento por uma fanfarra completa que desfila, ensurdecedora, pelo meio da cidade), em vez de criar alegorias que professem ideologias. Wes Anderson tem um prazer particular em ver as casas de bonecas que ele mesmo constrói pegando fogo.
Muito por isso, Moonrise Kingdom torna cristalina uma impressão que, sabe-se lá como, permanecia oculta: Wes Anderson faz os filmes que Luc Moullet faria se fosse americano e filmasse em Hollywood. Tal parentesco fica mais claro aqui em Bob Balaban, que encarna um narrador extremamente remetente à figura de Moullet em seus próprios filmes, e que contrabandeia sua estratégia de deixar o olhar fugir do quadro durante suas narrações, como se estivesse louco para fugir dali (e, em outro momento, Anderson praticamente recriará a dancinha de Minha Primeira Braçada). “Martin Scorsese define boa parte dos cineastas americanos como contrabandistas”, dizia Moullet. “Contrabando é fingir que cocaína é açúcar”. Existe definição melhor para este Moonrise Kingdom e sua perversa confeitaria, capaz de fingir que está falando sobre crianças quando, na verdade, é de nós, do nosso mundo, que ele está o tempo todo a falar?
Essa clareza se dá por Wes Anderson, sempre um cineasta do patético, estar aqui particularmente disposto ao ridículo, seja pelo tom intensificado das gags ou pela maneira despreocupada com que o filme flerta com o absurdo. O ridículo, porém, não deixa de ser comovente. É inevitável se simpatizar com a maneira como o Scout Master Ward (Edward Norton) se dedica de corpo e alma à inutilidade e incompetência de seu trabalho. O riso, no cinema de Wes Anderson, é sempre um riso triste, o riso da consciência de que gostaríamos de não estar rindo, pois nos reconhecemos ali, e sentimos também em nossos braços o apertão cada vez mais forte de nossas amarras sociais. O riso, no cinema de Wes Anderson, é tudo, menos balsâmico.
Pois, no fundo, Moonrise Kingdom é um filme triste, quase fatal. As crianças são capturadas pela câmera no único momento possível de vida, aquele entre o niilismo da infância e a submissão às convenções do mundo adulto. Suzy beija Sam pela primeira vez e aquele momento de entrega é atravessado pela consciência da ereção do garoto a lhe roçar as pernas. Ele pede desculpas, ela diz que gosta. “Você pode tocar o meu peito”, oferece, mas sequer há peito a ser tocado. O amor, aquele breve clarão que rasga o céu, é rapidamente curvado às convenções. Sam e Suzy começam a se comportar como outras pessoas que se amam se comportam, aprendendo seus passos na triste coreografia da vida adulta. Ao final do filme, Sam vai embora pela janela e Suzy já estará reproduzindo o comportamento de sua mãe infeliz, que deixa o marido em casa enquanto vai se encontrar com o amante. Moonrise Kingdom é um filme comovente justamente por sua dedicação irrestrita e inevitavelmente infrutífera a filmar o reino que nasce e morre no momento em que a lua começa a subir e a noite, certa e incontornável, ainda não terminou de chegar.
Moonrise Kingdom começa de forma parecida, com um disco na vitrola, uma casa aberta ao meio e as pessoas, por ali, cada uma em seu cômodo, fazendo sua parte da coreografia. Até aí, nada que não soubéssemos antes. Mas Moonrise Kingdom assume sua dimensão política trazendo para o primeiro plano uma característica que sempre esteve no cinema de Wes Anderson: se suas crianças se comportam como adultos, é porque seus adultos se comportam como crianças. Aqui, essa proposição é levada adiante, até torcer o rabo e mudar diametralmente de posição no espaço. Os jovens Sam (Jared Gilman) e Suzy (Kara Hayward) não só formam o único casal realmente feliz do filme; mais ainda, a convicção de que devem ficar juntos, aconteça o que acontecer, expõe a fragilidade de todas as relações ao redor. Wes Anderson filma a casa de bonecas como um mundo, pois por meio disso ele pode chegar a uma outra constatação fundamental: este mundo que todos levamos a sério, ele sim é uma casa de bonecas, um divertimento, uma bobagem que assumimos como dignidade cotidiana. Isso rebate inevitavelmente nas instituições: mais ridícula do que a lei, só a maneira como os adultos – advogados, policiais, assistentes sociais ou, piada das piadas, chefes dos escoteiros – se comprometem a segui-la independente de como o mundo se apresenta diante de seus olhos.
A inversão que revela a inversão é justamente o que faz deste Moonrise Kingdom, com toda sua leveza, uma obra tão mais eloquente do que bastiões das alegorias juvenis como “Animal Farm”, de George Orwell, e “The Lord of the Flies”, de William Golding – títulos que nos recebem à porta quando chegamos no acampamento de rapazes do filme. Embora a literatura infanto-juvenil seja referência flagrante no trabalho de Wes Anderson, seu toque está muito mais para J.D. Salinger do que para Orwell ou Golding. Por mais que o nome de Salinger tenha sido evocado de maneira muito justa à época do lançamento de Os Excêntricos Tenenbaums (tão justa que até o nome Tenenbaum é tirado de um conto de Salinger, o primoroso “Down at the Dinghy”), em geral faltava a percepção de que o interesse compartilhado entre os dois autores está em descobrir como a ourivessaria da techné pode revelar a falta de sentido do mundo por meio de epifanias (imagem-chave da obra de Salinger: uma discussão interrompida em um engarrafamento por uma fanfarra completa que desfila, ensurdecedora, pelo meio da cidade), em vez de criar alegorias que professem ideologias. Wes Anderson tem um prazer particular em ver as casas de bonecas que ele mesmo constrói pegando fogo.
Muito por isso, Moonrise Kingdom torna cristalina uma impressão que, sabe-se lá como, permanecia oculta: Wes Anderson faz os filmes que Luc Moullet faria se fosse americano e filmasse em Hollywood. Tal parentesco fica mais claro aqui em Bob Balaban, que encarna um narrador extremamente remetente à figura de Moullet em seus próprios filmes, e que contrabandeia sua estratégia de deixar o olhar fugir do quadro durante suas narrações, como se estivesse louco para fugir dali (e, em outro momento, Anderson praticamente recriará a dancinha de Minha Primeira Braçada). “Martin Scorsese define boa parte dos cineastas americanos como contrabandistas”, dizia Moullet. “Contrabando é fingir que cocaína é açúcar”. Existe definição melhor para este Moonrise Kingdom e sua perversa confeitaria, capaz de fingir que está falando sobre crianças quando, na verdade, é de nós, do nosso mundo, que ele está o tempo todo a falar?
Essa clareza se dá por Wes Anderson, sempre um cineasta do patético, estar aqui particularmente disposto ao ridículo, seja pelo tom intensificado das gags ou pela maneira despreocupada com que o filme flerta com o absurdo. O ridículo, porém, não deixa de ser comovente. É inevitável se simpatizar com a maneira como o Scout Master Ward (Edward Norton) se dedica de corpo e alma à inutilidade e incompetência de seu trabalho. O riso, no cinema de Wes Anderson, é sempre um riso triste, o riso da consciência de que gostaríamos de não estar rindo, pois nos reconhecemos ali, e sentimos também em nossos braços o apertão cada vez mais forte de nossas amarras sociais. O riso, no cinema de Wes Anderson, é tudo, menos balsâmico.
Pois, no fundo, Moonrise Kingdom é um filme triste, quase fatal. As crianças são capturadas pela câmera no único momento possível de vida, aquele entre o niilismo da infância e a submissão às convenções do mundo adulto. Suzy beija Sam pela primeira vez e aquele momento de entrega é atravessado pela consciência da ereção do garoto a lhe roçar as pernas. Ele pede desculpas, ela diz que gosta. “Você pode tocar o meu peito”, oferece, mas sequer há peito a ser tocado. O amor, aquele breve clarão que rasga o céu, é rapidamente curvado às convenções. Sam e Suzy começam a se comportar como outras pessoas que se amam se comportam, aprendendo seus passos na triste coreografia da vida adulta. Ao final do filme, Sam vai embora pela janela e Suzy já estará reproduzindo o comportamento de sua mãe infeliz, que deixa o marido em casa enquanto vai se encontrar com o amante. Moonrise Kingdom é um filme comovente justamente por sua dedicação irrestrita e inevitavelmente infrutífera a filmar o reino que nasce e morre no momento em que a lua começa a subir e a noite, certa e incontornável, ainda não terminou de chegar.
Fabio
Andrade
(Texto original: http://www.revistacinetica.com.br/moonrisekingdom.htm)
(Texto original: http://www.revistacinetica.com.br/moonrisekingdom.htm)
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