quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Radiografia de um meio


A Rede Social (The Social Network),de David Fincher (EUA, 2010)

A grande meta de A Rede Social é instaurar um conflito entre um formato narrativo influenciado por novas tecnologias e uma radiografia temática que nos leva a crer que este mesmo fenômeno tem raízes mais antigas do que a geração século XXI, mergulhada em seus próprios meios. Assim, o que vemos se desenrolar na tela é uma grande pesquisa (ou melhor, investigação) da natureza de uma ferramenta - suas bases e proveniências. O ineditismo das percepções de David Fincher, que fazem de A Rede Social um dos grandes filmes do ano no circuito comercial, vai muito além de seus cacoetes formais, das técnicas de montagem, táticas de construção não-linear, entre outros recursos influenciados pela invenção da internet e das redes sociais. Envereda para uma compreensão antes histórica do que circunstancial, e se o "navegar em rede" ou o "bate-papo"é efetivamente uma influência direta no tecido narrativo da obra, isto serve mais para evidenciar um paradoxo do mundo atual do que para dar expressão a uma geração ou a uma mitologia moderna. As percepções inéditas deste paradoxo são irônicas e catastróficas, de um lúgubre realismo, e trazem a força de um desamparo sem fim.

Zodíaco executara um movimento semelhante, e precisa ser visto como uma obra que se agrega à tradição literária de gênero policial e cinematográfica de investigação, onde todo o movimento se concentra na busca por uma explicação correta dos fatos, ao mesmo tempo em que permite uma radiografia do pânico social norte-americano. O que se põe agora nesta tradição, desdeZodíaco, são as bases de um mundo global interconectado por redes sociais, onde o temor se espalha com mais velocidade e as informações, por vezes infundadas, talvez desvirtuem mais do que efetivamente coloquem o investigador na trilha de seu objeto.

Aderindo à mesma guinada, 
A Rede Social parece adquirir mais consciência quanto à real natureza do problema. Narrativamente, o filme é organizado a partir de dois centros propulsores que se entrelaçam, isto é, os dois processos que Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg), inventor do Facebook, enfrenta. Estes dois processos dizem respeito aos dois grandes paradoxos da internet: a propriedade intelectual e o direito de autoria. A criação da internet tem raízes anarquistas um tanto quanto remotas - foi menos oriunda de uma inventividade tecnológica e mais de grupos de hackers que visavam a livre troca de informações. Só mais tarde seria tomada por grandes empresas atrás dos lucros titânicos que sua expansão global permitiria. Dada sua natureza "aberta", temos aí o primeiro paradoxo, em um conflito entre sua tendência liberal fundamental de tornar homogênica a posição de todo navegador, garantindo-lhe a liberdade de acesso a toda informação disponível, e a empreitada sempre frustrada das companhias capitalistas de limitar este acesso para lucrar com isto. Em essência, a internet nunca reconheceu estes parâmetros. Isto é, nunca reconheceu a propriedade.

Isto implica em alavancas narrativas bastante específicas, que perseguem Fincher desde, ao menos, 
Seven: um terceiro (ou quarto, ou quinto) elemento pode tomar para si ou agregar-se à linha central da narrativa em uma intervenção repentina, modificando a progressão natural do processo, ou renovando-o quando ele parece exaurido. A narrativa também pode verter repentinamente do drama central para uma visão de um acontecimento absolutamente individual que, até então, não surgira, e que, a partir de então, abraçará como dono a armação primeira da história. Em A Rede Social, este paradoxo está impresso diretamente na figura de Sean Parker (Justin Timberlake). Mas esta abertura só é permitida graças a um sentimento de concomitância, de abolição do tempo (mais afetivo do que concreto), onde tudo que é dito é exposto em demasia é colocado sob um regime de homogeneidade. A informação, na medida em que se torna mais acessível, globalizada, e, portanto, mais passível de furto, de apropriação, também se torna desenraizada, oriunda de fontes questionáveis.

O segundo paradoxo regula-se com o primeiro. A internet não tanto reformulou as relações entre emissor e receptor - a interatividade, diga-se de passagem, é uma palhaçada moderna - quanto abriu corredores para um dado mais relevante: todos passam a ser narradores em potencial. A informação, na medida em que passa a ser acessível e homogênea em 
status, torna-se também abundante e heterogênea em natureza, carecendo de fontes confiáveis e veracidade. Esta é a razão pela qual o serial killer de Zodíaco não pode ser encontrado, e, também, porque não podemos vir a determinar de quem é a real autoria do fenômeno Facebook em A Rede Social. Uma informação ou uma invenção provém da outra, e todas são apenas rastros fantasmagóricos que carecem de história, de um enraizamento mais fortuito. A internet também jamais reconheceu a idéia de autoria. Este segundo paradoxo, em A Rede Social, está impresso no processo movido pelos irmãos Winklevoss (Armie Hammer).
Assim, os dois processos jurídicos amarram uma quantidade infinita, contraditória e inconfiável de relatos nos quais o corpo narrativo do filme encontra sua consistência. Mas, apesar destes espectros, a narrativa ainda mantém um foco deveras central. Jamais estes relatos adquirem uma pessoalidade ou um caráter confessional qualquer: são impessoais, narrados sempre simples e unicamente em terceira pessoa, reservando-se de qualquer espécie de emocionalismo. Em realidade, o que David Fincher desenha não é somente um formato que expressa a vida mental de nosso estado de mundo. Antes, deve-se executar uma radiografia deste mesmo fenômeno, varrer por esta quantidade infindável de informação para ainda tentar retornar ao cerne da questão, isto é, a veracidade dos fatos. E o que se encontra ao fundo desta pesquisa, na visão de Fincher, é de uma tristeza absoluta, de uma solidão incomensurável.

O único resquício emotivo de 
A Rede Socialque sobrevive à superficialidade oscilante, à frieza dissipante e celeridade desta empreitada suicida, se encontra ligado à figura de Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg), e tem características semelhantes com o drama vivenciado pelo personagem de Tyler Durden (Brad Pitt) em Clube da Luta. Gestos mínimos, de motivações pessoais, adquirem proporções titânicas, sonoras, resultando em possíveis catástrofes. Portanto, a radiografia de um fenômeno amplo termina por não nos direcionar à veracidade dos fatos, mas a um drama íntimo - razão pela qual o posicionamento ideológico do filme não adere a seu próprio tecido estético, mas o enxerga como um distúrbio. Ao invés de forma e conteúdo pactuarem de modo singelo, elas geram um abismo que pode ser compreendido a partir da primeira cena, a principal cena do filme onde um germe é plantado. Cena que será revisitada com significativa diferença na seqüência final, criando um arco narrativo circular onde o meio é uma contorção de abertura, um desdobramento expansivo, uma plurificação hiperbólica dos germes iniciais cujos resultados encontraremos nos instantes finais.

Assim, reconhece-se, entre outras coisas, que as raízes do mecanismo das redes sociais são desdobramentos das tendências aristocráticas dos círculos sociais pomposos de raízes remotas; que as descrições de perfil advêm do ensejo adolescente de paqueras; que o gênio de Zuckerberg está antes em compreender uma demanda, em decifrá-la a partir do mundo que lhe é mais imediato - e que todo o processo de auto-expansão tem como simples razão o desejo de um jovem remediar uma relação amorosa por métodos um tanto quanto infantis. É o motivo homérico por excelência. A certa altura do filme, ao reencontrar com Erica Albright (Rooney Mara) em um 
pub e novamente ser rejeitado, sua resposta ao amigo que indaga sobre o reencontro é indúbia: "devemos expandir". Mas toda esta amplitude que a narrativa adquire desde seu momento inicial não consegue senão afastá-lo efetivamente do que então havia. Este paradoxo, enxergado por olhos injuriados, retira nosso chão à medida em que nos leva a duvidar não apenas da possibilidade de um juízo moral que os processos jurídicos procurariam, mas igualmente da efetividade do contorcionismo narrativo, de uma tecnologia nova, por si só, realmente modificar a natureza das relações.

Entre a seqüência inicial e a seqüência final - o ponto de partida e de chegada, os dois momentos estáticos do filme - cria-se um belo joguete paralelístico que deixa as coisas um tanto quanto no ar. Na inicial, um repertório de planos e contra-planos íntimos e verborrágicos em um espaço povoado e vivo onde existe ao mesmo tempo proximidade e o fim de um relacionamento, presença corporal e uma acusação de presunção. Na final, um ambiente árido e vazio, um repertório de planos e contra-planos entre o mesmo homem e a imagem na tela de computador do rosto da mesma mulher. Um silêncio melancólico e uma saudade infinda no olhar, ao mesmo tempo em que, ao invés da acusação de presunção, sua defesa por uma outra mulher; ao invés do rompimento de um relacionamento, também um convite a um relacionamento virtual. Um paralelismo contrastante sem aparentes denotações morais: o espectador deve fazer sua escolha neste paradoxo que, para além das sofisticações narrativas e estéticas, abriga o que mudou efetivamente nas relações entre os homens.

Pedro Henrique Ferreira
(Texto original: http://www.revistacinetica.com.br/redesocialpedro.htm)

Nenhum comentário:

Postar um comentário