MARROCOS
Sem extras dignos de nota e numa cópia que – o trocadilho é
irresistível – já está pra lá de Marrakech: é assim que nos chega em DVD esse
famosíssimo filme de Josef von Sternberg, o mítico Marrocos. Mítico por vários motivos: primeiro porque boa parte do acervo
iconográfico de Marlene Dietrich tem aqui suas imagens mais clássicas. Segundo
porque o deserto, o vento, a noite, a jornada dos heróis, tudo isso se vê
fincado em solos mitológicos na estrutura ficcional do filme. Para completar a
celebridade de Marrocos, e puxando a brasa
para a sardinha do universo crítico, tem também o fato de que ele foi alvo de
um daqueles rigorosos textos coletivos de revisão do cinema clássico nos
Cahiers du Cinéma em 1970.
Marrocos é
sem dúvida uma interseção histórica entre o poder da mulher de encarnar os
fetiches da sociedade moderna e o poder do cinema de ilustrar esse desejo vital
de fetiches. Um ponto de tamanha convergência só poderia resultar num enredo
que coloca a mulher como centro narrativo do filme – e, por tabela, como eixo
gravitacional do universo da ficção. Da mesma forma que o papel anterior de
Marlene Dietrich (O Anjo Azul) e seu passado extra-cinematográfico
(cantora de cabaré) são recrutados pelo filme, o passado extra-cinematográfico
do cinema também será convidado a participar do espetáculo: cenários de teatro,
números de music-hall, romance de folhetim.
No começo do filme, vemos os legionários chegando do
deserto, emergindo do fundo do campo – como miragens que ganham vida. Em meio
aos legionários está Tom Brown (Gary Cooper), por quem Amy Jolly (Dietrich) irá
se apaixonar. Como os Cahiers bem observaram, as determinações eróticas do
filme pervertem a hierarquia que engendra as relações sociais entre os
personagens.Marrocos estabelece um jogo erótico segundo o qual o objeto de
desejo é sempre de um escalão inferior ao de quem deseja. É por isso que a seta
da paixão aponta, no fim de tudo, para Brown, o legionário, aquele que, na
escala social que envolve os protagonistas do filme (os marroquinos seriam um
caso à parte), ocupa o último degrau. O rico e culto La Bessière, que conhece
Amy Jolly no barco que aporta em Marrocos, embora apaixonado pela dançarina,
acaba sendo um mediador entre ela e Brown, chegando mesmo a levá-la de carro
até o lugar onde o soldado está partindo junto ao resto da tropa na cena final.
O elemento nobre, portanto, acaba sendo um meio de ligação entre as pontas
“vulgares” da narrativa.
Ir atrás de Brown, como Amy Jolly faz, é ir atrás de
uma miragem (o ponto de atração – e de fuga – é o deserto). Ela se junta ao que
La Bessière, em cena anterior, chamara de “retaguarda”: as mulheres dos
legionários, que os seguem pelo deserto, mas que freqüentemente os encontram já
mortos, abatidos em algum combate. O plano de Amy Jolly olhando a legião se
distanciar, em silêncio, possui um ar antecipatório, prenunciando o que
ocorrerá na segunda metade do filme. Para atingir o deserto, esse lugar de
abstração radical, Amy Jolly se desfaz pouco a pouco dos adornos, dos enfeites.
Há dois momentos marcantes: o colar de pérolas se arrebentando em meio ao
jantar, quando ela recebe a notícia de que Brown está retornando à cidade, e a
clássica cena final, em que ela corre para se juntar às mulheres da
“retaguarda” e tira os sapatos de salto alto, deixando-os para trás na areia do
deserto, cena que Sternberg, naturalmente, mostra em detalhe. O filme parece
feito para ressaltar efeitos de escritura – efeitos de superfície – que hoje
soam inevitavelmente icônicos. Não é preciso já ter visto antes a cena dos
sapatos na areia do deserto para reconhecê-la de alguma forma: Marrocos tem
essa poderosa mística do déjà vu.
A outra cena antológica de Marrocos é
aquela em que Amy Jolly encontra Brown num bar acompanhado de uma prostituta.
Ela senta à mesa em que ele acabara de escrever seu nome com um canivete e eles
conversam não muito à vontade. Depois que Brown se levanta e Amy Jolly fica
sozinha, ocorre uma espera, por parte de nós, espectadores, até que Amy Jolly
descubra o que o filme já nos mostrou poucos minutos antes. Ela mexe nas cartas
que estão sobre a mesa, se perde em pensamentos, desvia o olhar. Uma forte
tensão se cria, pois o espectador torce para que ela veja seu nome escrito na
mesa, mas algo a bloqueia. Sternberg, nesse momento, nos dá a oportunidade de
realmente entrar no filme e ocupar o lugar dos personagens, querer que eles
saibam de algo que nós já sabemos. Quando ela finalmente vê seu nome escrito na
mesa, é uma surpresa e também uma obviedade, por mais estranho que isso possa
parecer.
Os close-ups de Dietrich suavizados atrás de um
tecido fino anteposto à câmera servirão sempre de argumento para dizer que ela
mesma – ainda que o enredo pareça ir na direção contrária, ao fazê-la se
desprender dos objetos-símbolos – seria o fetiche último do filme, guardado em
um estojo, como sugere a imagem algodoada de seu rosto. Dietrich é em Marrocos o
que outras musas de seu período também foram em outros filmes: “a encarnação
mesma do desejo massivo no cinema” (Antoine de Baecque, “De la vamp à
l’actrice”). De todo jeito, sabemos que o rosto mais fotogênico é também o mais
frágil, o que se equilibra de forma mais perigosa na linha que separa sua
beleza aureolada, sua face gloriosa, do horror da pele, da proximidade
repulsiva que um plano detalhe pode assumir (ver Pascal Bonitzer, “La
metamorphose”). E se Marrocos se posiciona exatamente nesse ponto limítrofe, nesse lugar
em que o rosto da vedete é lívido e incandescente ao mesmo tempo, é porque
Sternberg sabe a intensidade exata com que deve tocar nesse rosto.
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/85/dvdmarrocos.htm )
Tudo
é sexo
“Marrocos” foi produzido
poucos meses depois do encontro histórico de Sternberg com Marlene Dietrich, na
Alemanha, durante a produção de “O Anjo Azul”, encontro este que rendeu a ambos
uma prolífica parceria durante os anos 30, no que é considerado o ápice de suas
carreiras. Dietrich foi o grande símbolo do cinema erótico de Sternberg, que
afirmou em determinado momento “Marlene sou eu”, tamanha a mistura entre as
duas imagens.
O erotismo nessas obras foi
explorado de maneira nunca antes repetida na história do cinema hollywoodiano.
Sua liberdade na representação de temas tabus é assustadora quando comparada
com o cinema dos anos seguintes – principalmente nas décadas de 40, 50 e 60 - marcado
pela censura e o conseqüente enriquecimento dos subtextos. Aqui, sexualidade e
desejo são explorados num nível muito objetivo, direto na epiderme do filme,
nas suas linhas e entrelinhas.
Dietrich interpreta uma
cantora de cabaré chamada Amy Jolie, é caracterizada por certo peso, e como nos
motivos cênicos, envolta em mistérios que nos permitem entrever uma solidão
pungente. Ela representa o paradigma para a imagem da mulher independente no
cinema. Em sua primeira aparição, no cabaré, surge vestida de homem, fumando,
flertando com as mulheres e beijando uma na boca. Essa “masculinidade” da
personagem reaparece, por exemplo, na maneira ríspida com que ela expõe seus
sentimentos, dentro de uma máscara de indiferença que durante o filme vai sendo
substituída pela plenitude de seu desejo amoroso. O rompimento do colar de
pérolas e o abandono dos sapatos de salto no deserto são reveladores deste
desnudamento e conseqüente libertação.
A representação do desejo
está também nos corpos dos personagens, na maneira como se posicionam em
relação uns aos outros como objetos do olhar. Curiosamente, invertendo o cânone
hollywoodiano, a base do triângulo amoroso é um homem: Tom, interpretado por
Gary Cooper, é vítima do desejo de todas as mulheres da cidade e na sua
aparente “ausência” é muito mais objeto que sujeito dos olhares.
Esta abordagem freudiana, de
reencontrar o sexo em todos os dados da estrutura social é muito bem
representada no número das maçãs. Amy Jolie desce ao nível dos pobres, na base
da pirâmide cênica do cabaré e entabula uma rápida conversa com Gary Cooper na qual
lhe oferece uma maçã, dizendo que se quiser ele pode “pegá-la de graça”.
Obviamente o diálogo não trata de maçãs, mas propõe um retorno a imagem bíblica
da maçã como símbolo erótico.
Outros dados permanentes no
filme são a evidência da dissimulação e os diversos níveis de infidelidade que sustentam
os dramas. Neste sentido, a cena do enfrentamento entre oficial e soldado raso mascara
um conflito entre traidor e traído.
A retaguarda feminina em
contraste é movida quase exclusivamente pela evidência do amor. E é a este amor
que Amy Jolie se lançará no final do filme, ao atravessar um portal simbólico
que rompe a máscara de solidão da personagem e a permite mergulhar integralmente
no universo de seus sentimentos.
Miguel Haoni
(Cineclube Sesi Portão – 2013)
(Cineclube Sesi Portão – 2013)
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