quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Textos sobre "Marrocos" de Josef Von Sternberg


MARROCOS

Sem extras dignos de nota e numa cópia que – o trocadilho é irresistível – já está pra lá de Marrakech: é assim que nos chega em DVD esse famosíssimo filme de Josef von Sternberg, o mítico Marrocos. Mítico por vários motivos: primeiro porque boa parte do acervo iconográfico de Marlene Dietrich tem aqui suas imagens mais clássicas. Segundo porque o deserto, o vento, a noite, a jornada dos heróis, tudo isso se vê fincado em solos mitológicos na estrutura ficcional do filme. Para completar a celebridade de Marrocos, e puxando a brasa para a sardinha do universo crítico, tem também o fato de que ele foi alvo de um daqueles rigorosos textos coletivos de revisão do cinema clássico nos Cahiers du Cinéma em 1970.

Marrocos é sem dúvida uma interseção histórica entre o poder da mulher de encarnar os fetiches da sociedade moderna e o poder do cinema de ilustrar esse desejo vital de fetiches. Um ponto de tamanha convergência só poderia resultar num enredo que coloca a mulher como centro narrativo do filme – e, por tabela, como eixo gravitacional do universo da ficção. Da mesma forma que o papel anterior de Marlene Dietrich (O Anjo Azul) e seu passado extra-cinematográfico (cantora de cabaré) são recrutados pelo filme, o passado extra-cinematográfico do cinema também será convidado a participar do espetáculo: cenários de teatro, números de music-hall, romance de folhetim.

No começo do filme, vemos os legionários chegando do deserto, emergindo do fundo do campo – como miragens que ganham vida. Em meio aos legionários está Tom Brown (Gary Cooper), por quem Amy Jolly (Dietrich) irá se apaixonar. Como os Cahiers bem observaram, as determinações eróticas do filme pervertem a hierarquia que engendra as relações sociais entre os personagens.Marrocos estabelece um jogo erótico segundo o qual o objeto de desejo é sempre de um escalão inferior ao de quem deseja. É por isso que a seta da paixão aponta, no fim de tudo, para Brown, o legionário, aquele que, na escala social que envolve os protagonistas do filme (os marroquinos seriam um caso à parte), ocupa o último degrau. O rico e culto La Bessière, que conhece Amy Jolly no barco que aporta em Marrocos, embora apaixonado pela dançarina, acaba sendo um mediador entre ela e Brown, chegando mesmo a levá-la de carro até o lugar onde o soldado está partindo junto ao resto da tropa na cena final. O elemento nobre, portanto, acaba sendo um meio de ligação entre as pontas “vulgares” da narrativa. 

Ir atrás de Brown, como Amy Jolly faz, é ir atrás de uma miragem (o ponto de atração – e de fuga – é o deserto). Ela se junta ao que La Bessière, em cena anterior, chamara de “retaguarda”: as mulheres dos legionários, que os seguem pelo deserto, mas que freqüentemente os encontram já mortos, abatidos em algum combate. O plano de Amy Jolly olhando a legião se distanciar, em silêncio, possui um ar antecipatório, prenunciando o que ocorrerá na segunda metade do filme. Para atingir o deserto, esse lugar de abstração radical, Amy Jolly se desfaz pouco a pouco dos adornos, dos enfeites. Há dois momentos marcantes: o colar de pérolas se arrebentando em meio ao jantar, quando ela recebe a notícia de que Brown está retornando à cidade, e a clássica cena final, em que ela corre para se juntar às mulheres da “retaguarda” e tira os sapatos de salto alto, deixando-os para trás na areia do deserto, cena que Sternberg, naturalmente, mostra em detalhe. O filme parece feito para ressaltar efeitos de escritura – efeitos de superfície – que hoje soam inevitavelmente icônicos. Não é preciso já ter visto antes a cena dos sapatos na areia do deserto para reconhecê-la de alguma forma: Marrocos tem essa poderosa mística do déjà vu. 

A outra cena antológica de Marrocos é aquela em que Amy Jolly encontra Brown num bar acompanhado de uma prostituta. Ela senta à mesa em que ele acabara de escrever seu nome com um canivete e eles conversam não muito à vontade. Depois que Brown se levanta e Amy Jolly fica sozinha, ocorre uma espera, por parte de nós, espectadores, até que Amy Jolly descubra o que o filme já nos mostrou poucos minutos antes. Ela mexe nas cartas que estão sobre a mesa, se perde em pensamentos, desvia o olhar. Uma forte tensão se cria, pois o espectador torce para que ela veja seu nome escrito na mesa, mas algo a bloqueia. Sternberg, nesse momento, nos dá a oportunidade de realmente entrar no filme e ocupar o lugar dos personagens, querer que eles saibam de algo que nós já sabemos. Quando ela finalmente vê seu nome escrito na mesa, é uma surpresa e também uma obviedade, por mais estranho que isso possa parecer.

Os close-ups de Dietrich suavizados atrás de um tecido fino anteposto à câmera servirão sempre de argumento para dizer que ela mesma – ainda que o enredo pareça ir na direção contrária, ao fazê-la se desprender dos objetos-símbolos – seria o fetiche último do filme, guardado em um estojo, como sugere a imagem algodoada de seu rosto. Dietrich é em Marrocos o que outras musas de seu período também foram em outros filmes: “a encarnação mesma do desejo massivo no cinema” (Antoine de Baecque, “De la vamp à l’actrice”). De todo jeito, sabemos que o rosto mais fotogênico é também o mais frágil, o que se equilibra de forma mais perigosa na linha que separa sua beleza aureolada, sua face gloriosa, do horror da pele, da proximidade repulsiva que um plano detalhe pode assumir (ver Pascal Bonitzer, “La metamorphose”). E se Marrocos se posiciona exatamente nesse ponto limítrofe, nesse lugar em que o rosto da vedete é lívido e incandescente ao mesmo tempo, é porque Sternberg sabe a intensidade exata com que deve tocar nesse rosto.

 Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/85/dvdmarrocos.htm )



Tudo é sexo

“Marrocos” foi produzido poucos meses depois do encontro histórico de Sternberg com Marlene Dietrich, na Alemanha, durante a produção de “O Anjo Azul”, encontro este que rendeu a ambos uma prolífica parceria durante os anos 30, no que é considerado o ápice de suas carreiras. Dietrich foi o grande símbolo do cinema erótico de Sternberg, que afirmou em determinado momento “Marlene sou eu”, tamanha a mistura entre as duas imagens.

O erotismo nessas obras foi explorado de maneira nunca antes repetida na história do cinema hollywoodiano. Sua liberdade na representação de temas tabus é assustadora quando comparada com o cinema dos anos seguintes – principalmente nas décadas de 40, 50 e 60 - marcado pela censura e o conseqüente enriquecimento dos subtextos. Aqui, sexualidade e desejo são explorados num nível muito objetivo, direto na epiderme do filme, nas suas linhas e entrelinhas.
Dietrich interpreta uma cantora de cabaré chamada Amy Jolie, é caracterizada por certo peso, e como nos motivos cênicos, envolta em mistérios que nos permitem entrever uma solidão pungente. Ela representa o paradigma para a imagem da mulher independente no cinema. Em sua primeira aparição, no cabaré, surge vestida de homem, fumando, flertando com as mulheres e beijando uma na boca. Essa “masculinidade” da personagem reaparece, por exemplo, na maneira ríspida com que ela expõe seus sentimentos, dentro de uma máscara de indiferença que durante o filme vai sendo substituída pela plenitude de seu desejo amoroso. O rompimento do colar de pérolas e o abandono dos sapatos de salto no deserto são reveladores deste desnudamento e conseqüente libertação.
A representação do desejo está também nos corpos dos personagens, na maneira como se posicionam em relação uns aos outros como objetos do olhar. Curiosamente, invertendo o cânone hollywoodiano, a base do triângulo amoroso é um homem: Tom, interpretado por Gary Cooper, é vítima do desejo de todas as mulheres da cidade e na sua aparente “ausência” é muito mais objeto que sujeito dos olhares.
Esta abordagem freudiana, de reencontrar o sexo em todos os dados da estrutura social é muito bem representada no número das maçãs. Amy Jolie desce ao nível dos pobres, na base da pirâmide cênica do cabaré e entabula uma rápida conversa com Gary Cooper na qual lhe oferece uma maçã, dizendo que se quiser ele pode “pegá-la de graça”. Obviamente o diálogo não trata de maçãs, mas propõe um retorno a imagem bíblica da maçã como símbolo erótico.
Outros dados permanentes no filme são a evidência da dissimulação e os diversos níveis de infidelidade que sustentam os dramas. Neste sentido, a cena do enfrentamento entre oficial e soldado raso mascara um conflito entre traidor e traído.
A retaguarda feminina em contraste é movida quase exclusivamente pela evidência do amor. E é a este amor que Amy Jolie se lançará no final do filme, ao atravessar um portal simbólico que rompe a máscara de solidão da personagem e a permite mergulhar integralmente no universo de seus sentimentos.

Miguel Haoni
(Cineclube Sesi Portão – 2013)



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