sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Três é Demais, de Wes Anderson


Rushmore, EUA, 1999

Vamos começar desconsiderando o título brasileiro do filme de Anderson. Rushmore é o nome daquele que talvez seja o principal personagem do filme: a escola privada secundária onde estuda o protagonista e que ele tanto ama. Porque em última instância o filme é um exemplar do gênero do "cinema de escola". Mas isso é tudo de convencional ou qualificável que se pode encontrar no trabalho de Anderson. A partir da noção de um garoto de 15 anos vivendo intensamente seus anos de escola, o filme joga para o alto todas as convenções de gênero, e trabalha com uma mistura fundamental do que há de "realista" neste ambiente com o que ele projeta de imaginário e simbólico, pode-se dizer até mesmo que mítico, trabalhando na perspectiva da mitologia já criada pelo cinema americano como pela sociedade americana como um todo.Rushmore trabalha com esta "memória coletiva" com relação ao ambiente escolar, e constantemente a completa e subverte.
A começar pelo seu protagonista, Max Fischer. Ele é um garoto absolutamente incomum, mas ao mesmo tempo o mais comum deles. Não se pode encaixá-lo nas categorias que geralmente os filmes de escola criam, entre os nerds e os cool. Ele certamente nada tem de cool, mas ao mesmo tempo projeta uma profunda crença em tudo o que faz e acredita, disposto a abraçar o mundo com seu entusiasmo. É um garoto essencialmente bom, mas também capaz das maiores maldades quando contrariado. Ele mente, é péssimo aluno nas notas, mas ainda assim nunca tem nenhuma destas características colocadas em julgamento. Trata-se de fato de um personagem único, ou seja, ele dialoga com toda uma tradição de personagens, sem cair numa fórmula. Só Max Fischer pode ser Max Fischer.
Este é um dos mais essenciais pontos do cinema de Anderson que precisa ser entendido: todos os seus personagens dialogam com uma herança de tipos, mas nunca se encaixam em nenhum deles. O melhor amigo de Max é um garoto bem mais novo que ele, mas com a postura e os diálogos de um verdadeiro adulto, sempre em desacordo com sua imagem. Ao mesmo tempo, é capaz também de se voltar contra Max impiedosamente quando se sente traído. O objeto de desejo de Max também não é uma convencional colega a quem ele aspira, mas uma professora claramente fora do seu alcance, platônica, que só torna sua história mais terna e dura ao mesmo tempo.
Mas, talvez o principal personagem dentro desta perspectiva da estranheza ao estereótipo seja o magnata interpretado por Bill Murray, numa performance de impressionante contenção e sutileza. Trata-se de um milionário desencantado com a vida, e fascinado pela força vital de Max, que se torna um grande amigo dele. O que surpreende nesta relação entre um homem de mais de 50 anos e outro de 15 é que ela nunca de se dá na esperada condição de pai-filho. Pelo contrário, se há uma figura que surge como modelo entre os dois, é a de Max. A estranheza constante nesta relação se dá justamente pelo caráter verdadeiramente de iguais que se estabelece entre eles.
Porém não são só os personagens de Wes Anderson que trabalham nesta linha tênue entre o surreal e o realista. Todo o filme possui esta mesma sensação, com o trabalho cuidadoso e detalhista de direção de arte, figurinos, fotografia, e em especial a utilização da trilha sonora. Não se tem no filme a localização de um local ou uma data, porque é como se o diretor quisesse que nós víssemos uma essência atemporal do que seja ser adolescente, ter aspirações, ir à escola. O filme não é nunca anacrônico nem atual, mas transita constantemente entre os dois, com elementos quase sempre conflitantes e estranhamente funcionais.
O cinema de Anderson possui uma qualidade rara que é a capacidade de se mostrar extremamente cerebral no sentido da construção, onde se percebe com olhos atentos o cuidado com cada detalhe, que vai da movimentação de câmera ao mais sutil gesto dos atores, e os cuidados com o que se vê e ouve até mesmo no "background". Ao mesmo tempo, este detalhismo não se torna jamais frio, por causa do carinho e do arcabouço mítico com o qual o diretor trabalha, permitindo uma identificação constante do espectador com aquilo que assiste, por mais absurdo que possa parecer.
É como se os personagens trabalhassem fora da norma comum de comportamento social, mas aquilo que eles externam seja compreendido perfeitamente por se relacionar com o que todos sentimos. Rushmore é filmado como se visse o interior das pessoas, ultrapassando o limite do "real". Por isso consegue ser tão emocionante ao mesmo tempo em que é calculado e estranho. Trata-se de uma característica que assemelha em muitos pontos o trabalho do diretor com o dos irmãos Coen, que sempre trabalham com o conceito da "Americana" (a mitologia formadora de um imaginário comum de ícones norte-americanos) guiando seus filmes, que patinam no limite do mágico e do real, dos Estados Unidos entendidos em si mesmos como metáfora constante e um país que possui um tal arsenal imagético sobre si próprio que suas significações são necessariamente baseadas nele.
A sensação constante em Rushmore é que cada palavra e cada gesto dos personagens possui uma importância capital em suas vidas. E isso é especialmente adequado uma vez que o filme seja praticamente feio dentro da visão de seu protagonista, e aos 15 anos todos os atos e gestos têm esta força, tudo parece que vai durar para sempre e cada palavra de carinho ou rejeição possui proporções descomunais. Num momento o personagem de Bill Murray fala para Max: "Eu gastei 8 milhões de dólares para chamar a atenção dela!", ao que ele responde: "E isso é tudo que você está disposto a gastar?" Por conseguir capturar esta atmosfera onde amor, amizade, lealdade e rejeição são muito maiores e mais vitais do que em qualquer outro momento na vida, Rushmore é um dos maiores filmes americanos sobre esta idade, sobre esta condição chamada adolescência.

Eduardo Valente

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