Texto sobre o filme
"Onibaba" de Kaneto Shindô (1964)
Kaneto
Shindô nasceu e cresceu na ensolarada cidade de Hiroshima e foi, indireta, mas
profundamente, afetado pelos bombardeios de 6 de agosto de 1945. Toda a sua
vida e obra foram marcadas pelos efeitos daquela tarde de segunda-feira, como
os corpos dos hibakusha, grupo, estigmatizado no Japão, dos sobreviventes
deformados pela radiação.
O grande "Onibaba" de 1964 retrata com habilidade os efeitos morais e sociais de uma guerra desumana. Ao acompanhar o cotidiano mórbido de personagens vivendo na periferia dos combates, Shindô lança algumas questões sobre a fragilidade da civilização. Seja no século XIV, em 1945 ou 1964 o jovem japonês é açoitado pelo peso de uma tradição que não lhe representa, cujas implicações morais e éticas o empurram sempre para o abismo da insatisfação.
O filme começa com o movimento de um matagal de juncos ao vento acompanhando um embriagado solo de saxofone; uma sobreposição audiovisual de duas dimensões da mesma selvageria: primitiva e moderna. Neste contexto nos são apresentadas as duas personagens principais (velha e nova, sogra e nora), que, tais quais os siris estampados no quimono da velha, alimentam-se dos mortos. Não diretamente, mas através de um absurdo sistema de trocas. A condição sub-humana das personagens é brilhantemente exposta nos silenciosos primeiros 10 minutos de filme em que as duas matam, livram-se dos corpos, comem e dormem como feras da floresta.
A jovem, entretanto, possui ostras estampadas no quimono, um símbolo feminino e afrodisíaco e trará para o filme um elemento fundamental: o erotismo. Ao descobrir-se viúva através do relato do esperto Hachi (o vizinho desertor), a jovem começa a desenvolver uma sexualidade pulsante, largamente valorizada pela ousada câmera de Shindô. O olhar de Hachi é o mesmo olhar que o público lança no processo de descobrimento do potencial erótico da personagem.
Este olhar é por vezes obstruído por um terceiro olhar: o da velha. Aqui o grande conflito tradição X modernidade, tão caro aos diretores da Nouvelle Vague japonesa, aparece no filme. A moral sexual hipócrita da sogra é defendida através de uma argumentação e de um embuste religioso: o medo do inferno. Mas a mulher (e simbolicamente a geração) que permitiu que seu garoto fosse à guerra não tem força para refrear a pulsão lasciva da jovem. Numa terra virada do avesso, o inferno é pouco e os esforços da sogra acabam caindo por terra.
A virada fantástica na trama ocorre neste instante. Shindô insere no filme a figura mágica de um samurai mascarado que guarda um rosto deformado. A velha o engana, o mata, o rouba e usa sua máscara para aterrorizar a nora. Aqui a referência à desprezada casta dos hibakusha, maltratados por um povo acostumado a jogar seus traumas de guerra para debaixo do tapete, é pungente. As últimas palavras do filme “não sou um demônio, sou um ser humano” são reveladoras quando a hipócrita e tradicional personagem, ela mesma transformada em hibakusha, consegue enfim extrair o terror genuíno de sua nora.
Miguel Haoni
(Cine CCBEU – julho de2009)
O grande "Onibaba" de 1964 retrata com habilidade os efeitos morais e sociais de uma guerra desumana. Ao acompanhar o cotidiano mórbido de personagens vivendo na periferia dos combates, Shindô lança algumas questões sobre a fragilidade da civilização. Seja no século XIV, em 1945 ou 1964 o jovem japonês é açoitado pelo peso de uma tradição que não lhe representa, cujas implicações morais e éticas o empurram sempre para o abismo da insatisfação.
O filme começa com o movimento de um matagal de juncos ao vento acompanhando um embriagado solo de saxofone; uma sobreposição audiovisual de duas dimensões da mesma selvageria: primitiva e moderna. Neste contexto nos são apresentadas as duas personagens principais (velha e nova, sogra e nora), que, tais quais os siris estampados no quimono da velha, alimentam-se dos mortos. Não diretamente, mas através de um absurdo sistema de trocas. A condição sub-humana das personagens é brilhantemente exposta nos silenciosos primeiros 10 minutos de filme em que as duas matam, livram-se dos corpos, comem e dormem como feras da floresta.
A jovem, entretanto, possui ostras estampadas no quimono, um símbolo feminino e afrodisíaco e trará para o filme um elemento fundamental: o erotismo. Ao descobrir-se viúva através do relato do esperto Hachi (o vizinho desertor), a jovem começa a desenvolver uma sexualidade pulsante, largamente valorizada pela ousada câmera de Shindô. O olhar de Hachi é o mesmo olhar que o público lança no processo de descobrimento do potencial erótico da personagem.
Este olhar é por vezes obstruído por um terceiro olhar: o da velha. Aqui o grande conflito tradição X modernidade, tão caro aos diretores da Nouvelle Vague japonesa, aparece no filme. A moral sexual hipócrita da sogra é defendida através de uma argumentação e de um embuste religioso: o medo do inferno. Mas a mulher (e simbolicamente a geração) que permitiu que seu garoto fosse à guerra não tem força para refrear a pulsão lasciva da jovem. Numa terra virada do avesso, o inferno é pouco e os esforços da sogra acabam caindo por terra.
A virada fantástica na trama ocorre neste instante. Shindô insere no filme a figura mágica de um samurai mascarado que guarda um rosto deformado. A velha o engana, o mata, o rouba e usa sua máscara para aterrorizar a nora. Aqui a referência à desprezada casta dos hibakusha, maltratados por um povo acostumado a jogar seus traumas de guerra para debaixo do tapete, é pungente. As últimas palavras do filme “não sou um demônio, sou um ser humano” são reveladoras quando a hipócrita e tradicional personagem, ela mesma transformada em hibakusha, consegue enfim extrair o terror genuíno de sua nora.
Miguel Haoni
(Cine CCBEU – julho de2009)
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