O
excesso de sons e a estridência dos volumes são dados constitutivos dos filmes blockbuster. Grande parte de seu efeito espetacular é
amparada por um tratamento sonoro hiperagressivo no qual diálogos, ruídos e
música são amplificados para extrair reações emocionais exageradas.
Uma
das mais impressionantes exceções é o filme “O Hospedeiro”, maior bilheteria na
história do cinema sul-coreano. Tributário à estrutura das megaproduções
hollywoodianas, o filme é ao mesmo tempo uma das obras mais criativas da
cinematografia recente oriental, constituindo-se um caso exemplar do que
chamaremos “blockbuster de arte”.
A
excelência técnia (resultante do grande orçamento) encontra a ousadia estética
(busca de uma direção expressiva) em todos os aspectos, principalmente na banda
sonora. Como um jovem mestre do suspense, Bong (e sua equipe, naturalmente) usa
o silêncio e o som numa intensidade emocionalmente melódica e um dos momentos mais
significativos é provavelmente o da primeira aparição do monstro no filme.
Aos
onze minutos de projeção vemos a criatura pendurada na ponte pela primeira vez.
O som ambiente, com as vozes baixas, distantes e suaves é abruptamente quebrado
pelo grito de avô e neta em outro núcleo dramático. O faux-raccord sonoro çiga
a calma suspensão dos que observam a criatura do lado de fora com a alegria da
dupla que, dentro de um trailer, assiste à transmissão televisiva de uma
disputa de arco e flecha.
Na
sequencia, o monstro se desprende, chega à margem e desaparece de forma
anormalmente calma, até que é flagrado correndo sobre o trapiche, atropelando
as pessoas. Sua aproximação do ponto de vista do protagonista é acompanhada
pelo surgimento e gradual crescimento da música (que até então não existia). As
batidas constantes e o tom grave harmonizam-se com os agudos gritos das pessoas
e o guinchar do monstro. O barulho resultante é contrapontuado por três
brilhantes deslocamentos do ponto de escuta.
No
meio do caos somos subitamente lançados para uma idílica paisagem sonora com
uma canção ao piano e o som das asas de pássaros ao fundo. Uma moça que escuta
a música em fones de ouvido aparece na tela sendo bruscamente arrancada de sua
distração pelo monstro. Saímos do ponto de escuta subjetivo dela e retornamos à
ambiência agitada.
Em
seguida, entramos num metrô de superfície, de onde a cena é observada à
distância pelos usuários. Neste momento os sons da confusão são abafados e a
voz metálica da gravação no metrô traz de volta os agudos para uma paisagem que
se reduziu quase que exclusivamente aos graves.
O
terceiro e mais complexo deslocamento acontece pouco depois da confusa
colaboração do protagonista com um soldado americano (cujos gritos da namorada,
que não vemos, ampliam o sentimento de horror). Após a decepção no campeonato
de arqueirismo, a garotinha sai silenciosamente do trailer e chuta uma lata de
cerveja. O filme nos permite ouvir, com uma sádica tranquilidade, o chiado da
cerveja vazando sob a pressão de um furo na lata. Enquanto a menina em direção
ao objeto, a banda sonora vai sendo gradualmente invadida pela gritaria do
ambiente. Esta pausa no barulho e o destaque para a lata de cerveja (objeto que
a partir daqui será o leitmotiv da
ligação entre pai e filha) é o prelúdio para o clímax da sequencia.
Em
câmera lenta, o protagonista cruza a multidão em fuga e agarra a mão da
garotinha, sua filha. Conforme fogem do monstro, um conjunto de cordas
(violinos e violoncelos) vai dominando a trilha sonora num crescendo
emocionante. O pai tropeça, levanta, recupera a mão da menina e segue até
perceber que a mão na sua não é a da filha. Quando vira para trás as cordas
chegam ao máximo volume e explodem num silêncio absoluto. A menina se levanta,
enquanto que o monstro, em ralenti,
corre na sua direção. As passadas ocas do monstro emulam batidas de coração,
preenchendo o silêncio com uma reverberação claustrofóbica. Quando puxa a
menina pela direita do quadro, um pombo voa em sentido contrário, deixando-nos
ouvir o farfalhar suave de suas asas, e após um longo e silencioso salto, num
plano sem oxigênio, o monstro cai ruidosamente no rio, deixando a cena
recuperar depois de muito tempo, o som ambiente.
Esta
paisagem sonora, em seu trajeto único, investe ao mesmo tempo na comunicação
espetacular e numa experimentação sensível, provando que as ambições comerciais
não precisam ser sinônimas de pobreza estética e nem serão, enquanto artistas
da imagem e do som se apropriarem destes mecanismos.
Miguel
Haoni, 2012
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