Um filme de Fritz Lang
Clash by Night levanta em primeiro lugar, o
problema do “happy end”. O filme baseia-se numa peça de Clifford Odets (com Liliom são os únicos exemplos, na obra
de Lang, de filmes baseados em peças de teatro) de que o cineasta gostava
muito. Mas o final é inteiramente transformado: na peça, o marido matava o
amante da mulher; no filme, o assassinato não se consome e Paul Douglas perdoa
a Barbara Stanwyck.
“Happy end”
inverosímil, à Hollywood? Ao contrário do sucedido noutros casos, nenhuma exigência de
produção impôs este final. Pelo contrário, Jerry Wald (o produtor) teve a maior
dificuldade em o aceitar. A ideia foi exclusivamente de Lang e obedece a um
princípio por ele muitas vezes enunciado: a morte não resolve nada.
Lang desenvolveu em vários artigos esta ideia: o
absurdo do crime passional. Se um homem é enganado e mata o amante da mulher de
quem gosta, esta nunca mais lho perdoará e afastar-se-á ainda mais dele; se
mata a mulher “culpada”, perde-a definitivamente. Em qualquer dos casos,
literalmente, o crime não compensa, ou seja, não dá ao seu autor aquilo que ele
tenta acima de tudo obter: o amor da mulher. Tais crimes são irracionais
e gratuitos. Ou, como tantas vezes Lang também disse, não há nenhuma
razão para dar a uma tragédia dimensões de que não necessita.
Lembramos que em The
Woman in the Window foi esse o motivo porque Lang transformou o “script”
num sonho do protagonista (era absurdo estragar a vida a este por um
episódio tão casual). Em Clash by Night,
o episódio não é casual e, por isso mesmo, o espectador espera a morte
de Ryan. Frustrando-o, Lang impôs outra lógica muito menos convencional, e
muito menos à medida dos nossos códigos e das nossas expectativas.
E é, vista por este ângulo, que a questão do “happy
end” do filme se pode pôr de forma muito mais complexa. Será mesmo um “happy
end”? Como Jerry, não acreditamos na sinceridade do regresso (e do
arrependimento) de Mae: “you never loved
me. Bein’ safe -
bein’ taken care of - that’s all you wanted”. Todos os sinais do filme,
tudo o que se conhece do passado da protagonista, das razões que a levaram a
casar com Jerry, da sua relação com Earl, aponta para a verosimilhança das
dúvidas do marido e para o que Earl também lhe dissera antes: “Go back to Jerry and all the music box
starts again. How long? One month, one year?” Presumivelmente, tem razão e
aquele “happy end” é apenas o prelúdio a vários e novos Ryans na vida de
Stanwyck, a novos infernos como aquele a que descemos no filme. Quem
acredita que seja feliz aquele final, com Barbara Stanwyck apenas à procura
duma casa (“confidence, safety, home”) ou,
como ela o diz, no início, “nothing but
home...?”.
Mas a resposta de Stanwyck ao marido se não é
convincente, é perturbante: “People
changed. You find out
what’s important and what isn’t. What you really want”. E
depois “Am I the only woman in the world
who thought she was in love with a man and then found out she wasn’t?”. É essa possibilidade de
mudança (mesmo que remota) que faz vacilar Jerry e o faz finalmente aceitar
a mulher: “You’ve got to trust somebody. There
ain’t no other way”. Foi isso que Mae sempre pediu, é isso que Jerry
finalmente lhe dá (cf. com episódio em que ela fala a Ryan do homem de quem
gostou).
Se citei tantos diálogos, não foi para fazer crítica
literária, mas porque, conjugados com a “mise-en-scène” desse final, ficamos,
como os protagonistas, partilhados entre a dúvida e a crença. É possível que
tudo continue a correr mal, mas é possível que o imenso amor de Jerry
(personagem simultaneamente tão pequeno e tão grande) seja capaz do “milagre”.
O filme termina como começa: uma harmonia pré-estabelecida (a espantosa
introdução documental) e uma desarmonia por humanos introduzida (reforçada pela
instância cinematográfica, quer a dos próprios códigos narrativos desta, quer
da nada inocente profissão de projeccionista de Ryan). E entre elas nada se
decide.
O que há de mais admirável nesta obra, é a total
ausência de batota de Lang na caracterização das personagens: nenhuma delas
(embora não imediatamente atraentes) deixa de ser profundamente compreensível.
Percebemos a inocência frustrada de Jerry e as suas reacções (da confiança no
amigo e na mulher, até à explosão de violência na pasmosa sequência da cabine)
percebemos a crescente frustração de Mae e a sua atracção por Earl, percebemos
também este e como ele tem razão quando diz a Barbara Stanwyck que toda a gente
quer que ela se sinta culpada e que, se tiverem pena de Jerry, ninguém a terá
deles, e que alguém tem que perder.
Os três são um complexo de coisas mesquinhas e coisas
sérias, de tal forma que qualquer conclusão era plausível, ou seja qualquer
ponto de vista podia prevalecer. Qualquer defesa de um ponto de vista,
como o prevalecente, é parcial (parte das nossas próprias projecções). Por
isso, Lang frustra as nossas expectativas de um desenlace convencional e dando
a volta ao “happy end”, deixa tudo num ponto de suspensão. Com Marilyn e Keith
Andes a esvoaçarem em torno dos protagonistas e a ecoarem (na sua pobre
história de amor) o drama dos protagonistas. Neste sentido, este filme em que
Lang dá tanto espaço aos exteriores (ele que normalmente os evita) é porventura
a sua obra mais aberta, que admite mais diversas leituras e mais diversas interpretações. Ao
espectador, é deixada a perplexidade, a escolha entre o tema do eterno retorno,
ou da modificação quando não há “no
other way”. E é por não haver “no
other way” que, mesmo que acreditemos na mudança de Stanwyck, nada de
alegre existe no final. São, mais uma vez, as tristes regras dum triste jogo.
Tristes regras que implicam, inclusive, a mudança de
códigos afectivos. Apesar da irritação de Mae (e da nossa) Jerry adora as
piadas estúpidas de Earl (o truque do Chinês) e não se importa nada que ele lhe
chame “Jeremiah”. Earl vê sobretudo em Mae os olhos azuis (“Where have you got those blue eyes?”). Quando o jogo se inverte, Douglas atira à cara do
amigo a história do chinês e berra-lhe que não o chame “Jeremiah”: Ryan insulta
os olhos azuis da protagonista. E os espantosos personagens do pai e do tio
abandonam o estatuto subalterno, para figurarem como intriguistas ou coro (“ask your wife”).
As tristes regras e o triste jogo implicaram também
uma assinalável mudança de estilo de Lang. Determinaram os exteriores
(Monterey, local de acção do Cannary Row
de Steinbeck, onde Lang e o operador Musuraca filmaram cerca de 3.000 metros de
película, parcialmente aproveitada na fabulosa introdução) a pontuação pelas
vagas e mesmo certo virtuosismo de câmara e de montagem relativamente raros em
Lang (por exemplo o plano sem cortes em que Marilyn e Keith Andes brincam na
praia, desaparecem atrás do rochedo e voltam para entrar no restaurante,
filmado com transparências). Os exteriores impõem esse contraste paisagem
humana-paisagem natural, de que já acima se falou e que é fundamental para a
respiração do filme, o virtuosismo de câmara e de montagem, sublinha, como o
próprio Lang disse, a variedade de pontos de vista, contrastando, no plano
citado, com o único olhar que pode abarcar tudo (o de Earl).
E passo sobre muita coisa sublime (de que talvez a
mais genial seja a sequência na cabine de projecção, mais um exemplo de “filme
dentro do filme” na obra de Lang) para sublinhar que a abordagem estética desta
obra não é certamente alheia à visão dalguns filmes do chamado realismo
italiano que por esses anos começavam a chegar à América.
Em certo sentido, Clash
by Night é um filme rosselliniano, vivendo da acumulação de pormenores e
tensões para o “milagre” final. As ondas, as nuvens, as gaivotas, os golfinhos,
os barcos, as sardinhas, as relações familiares são a pontuação duma ordem
exterior. Só que Lang não era um homem que acreditasse na Graça e por isso tudo se sobrepõe como no magnífico raccord do grande plano de Robert Ryan
com a lua e as nuvens pretas entre a festa do casamento e o nascimento do bébé.
Como Rohmer dizia de The Blue Gardenia,
Lang vence o neo-realismo no próprio terreno deste, demonstrando em Clash by Night, como estava perdida
essa aposta.
E para terminar, Marilyn. Se duas frases que diz no
filme, têm hoje, especial sabor (quando Ryan lhe chama “um fruto na fruteira” e quando responde a Stanwyck, mostrando o
presente do noivo, “diamonds make me
ponctual”), o mais importante é já ser ela a outra face da solidão dos
protagonistas. Tanto dos que têm “the
heart in the right place” como dos que o têm no “wrong place”. Neste filme do “help
me” de Earl a Mae, de personagens que ninguém pode ajudar, sós e perdidos
em caminhos jamais convergentes, Marilyn está já premonitoriamente.
Ela é também o eco desse plano terrível de Robert Ryan
com o urso de peluche, ou da pergunta três vezes repetida de Jerry a Mae: “Why, why, why?”.
JOÃO BÉNARD DA COSTA
(folhas da Cinemateca Portuguesa
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