Um filme de Fritz Lang
São conhecidas e tem sido
muito comentadas as relações entre o mundo de Lang e o de Hitchcock. Ministry of Fear é um exemplo
paradigmático dessas relações. Num certo sentido, esta obra é o North by Northwest de Fritz Lang.
É-o pelo modo como Ray
Milland é apanhado na teia. Se não se levantou acidentalmente, como Cary Grant
no filme de Hitchcock, por puro acidente lhe foi parar às mãos o bolo trocado
que desencadeia todas as peripécias do filme. Quando, no final, Marjorie
Reynolds lhe dá de novo um bolo para as mãos, estamos num efeito tipicamente
hitchcockiano (languiano, também, porque Milland podia dizer, como Edward G.
Robinson no final de The Woman in the
Window - filme do mesmo ano - “nem
por um milhão de dólares”).
É-o ainda pela utilização
do nazismo como um “mac guffin” (para utilizar terminologia hitchcockiana), ou
seja um falso cerne da obra (não nos interessa nada saber dos segredos contidos
no bolo, nos filmes, etc.)
É-o pela fabulosa sucessão
de efeitos de “suspense”, desde a aparição do falso cego, à “morte” de Cost,
sua “ressurreição” como Travers e suicídio deste.
É-o pelos espaços
escolhidos, desde o bazar de caridade à sede da “Mothers of Free Nations”; desde a livraria à alfaiataria, desde
os hospitais aos hotéis.
É-o pela permanente dúvida
sobre identidades: além do falso cego, o psiquiatra anti-nazi, “acima de
qualquer suspeita”, o irmão de Marjorie Reynolds, a espírita, até ao polícia da
Scotland Yard cuja aparição inicial, recortado em sombra ameaçadora nos faz
hesitar durante algum tempo sobre a possibilidade de nova armadilha, sobre o
seu real estatuto de polícia (como ele próprio duvida da inocência de Ray
Milland em tudo aquilo).
É-o por múltiplas frases ou
pormenores: quase ao acaso, cito o “don’t
get envolved with the police in any way” inicial (o “Jovens, evitem a prisão” de Hitchcock); a transformação do décor
da casa e da identidade da espírita; a eliminação do cadáver; o plano, no
abrigo, em que Ray Milland esconde a cara; as peripécias em torno da mala; o
quarto de hotel vazio onde a dita mala revela o seu conteúdo; a descoberta do
bolo, através dos pássaros (sequência das ruínas); a tesoura de Dan Duryea; o
plongé sobre a escada da perseguição final (Vertigo “avant la lettre”);
a batalha final nos telhados.
Podia multiplicar exemplos,
e ir ao ponto de perguntar quantas vezes terá Hitch visto este filme. Mas
também tudo isso é pouco importante. Porque dizer que Ministry of Fear é North by
Northwest ou procurar o essencial deste filme pelas bandas do mundo da
culpa e do do desejo do autor de Rear
Window é outro “macguffin” para este filme.
Não porque as coordenadas
não sejam aproximáveis (e daí as semelhanças aparentes) não porque se não
esteja também num mundo de culpa e desejo ( e nem falta aqui uma loura -
Marjorie Reynolds - que bem podia ter vindo dum filme de Hitchcock), não porque
o herói não seja tipicamente da galeria hitchcockiana (e até o foi - muito mais
ambiguamente - no Dial M For Murder),
mas porque, uma vez mais (mas usar de efeitos de repetição é languiano e
hitchcockiano) , a confabulação prodigiosa não nos leva à inanidade da culpa
(ou à do desejo) a estarmos neles espelhados, mas à sua explícita subjectivação
e a vermos o espelho deles (culpa e desejo). E, nesse sentido, o caminho é
inverso.
Ao contrário dos heróis de
Hitch, Ray Milland não é um falso culpado. Nunca se desprende ao
longo do filme da história passada com a sua primeira mulher, que assassinou
eutanasicamente. Essa história que não vemos: (qualquer “flash-back”
logicamente possível, destruiria a sua carga mítica) constitui o objecto
do longo racconto de Milland na sequência-chave do esconderijo. “In a dark corner” e junto de outra
mulher, Milland dá uma versão dividida e culpada dessa morte, divisão e culpa
acentuadas pelo magistral grande plano que se mantém durante toda essa
confissão. Quando acaba e diz “and there
isn’t any pain anymore”, a câmara avança para enquadrar Marjorie Reynolds e
em “off” ouvimo-lo esperar que ela responda à pergunta sobre a sua culpa.
Contracampo rápido e o protagonista, revendo os seus inimigos, esconde a cara,
representando essa figura de ocultação a mais clara das respostas à questão que
pôs.
Num dos planos seguintes,
vemos Marjorie Reynolds a dormir no colo dele. Mas Ray Milland não adormeceu.
Só que tudo ficou claro. Mas os jornais não fazem qualquer referência à morte
do misterioso Mr. Cost e a culpa regressa de novo. Sabemos, nessa altura,
porque razão, diante da “fortune-teller”,
Ray Milland não quer saber do passado, mas do futuro; porque razão não
resiste à sessão de espiritismo (montada para ele, encenada para ele, ou
melhor dizendo, montada para a sua culpa e encenada para a sua culpa), porque
razão assume a culpabilidade da morte final dessa sessão. Porque razão o
personagem sempre fugiu da luz e dos olhares directos (embora sempre perseguido
por visões, mesmo a daquele que tomou como cego).
Se Ray Milland é tão
profundamente envolvido naquela teia é porque todos exploram essa culpabilidade
exposta, espelhada nele. Por isso, na fabulosa sequência da sessão de
espiritismo, todos surgem - num efeito tipicamente languiano - isolados e
recortados do escuro como outros tantos juízes que o viessem de novo acusar;
por isso, nessa mesma sequência é tão importante para ele o “don’t break the circle” que
efectivamente acaba por quebrar; por isso vacila quando depois do suicídio de
Duryea acusa e ouve como eco o “you
killed your wife”; por isso, a sua libertação só se dá quando Marjorie
Reynolds repete o gesto dele, matando - eutanasicamente também - o irmão (“You won’t shoot your own brother”). Mas
Marjorie, não se move nesse mundo de culpas e o tiro parte (num dos mais
geniais planos de Lang) através da porta, nesse pequeno buraco que permanece
como um dos efeitos de olhar mais misteriosos da sua obra (Lotte Eisner conta
em pormenor o modo e o tempo como esse plano foi filmado).
Mas (sob a figura irónica)
os fantasmas regressam no final, com o
segundo bolo, que não é, pois, uma pontuação hitchcockiana, mas o sinal da
permanente ameaça que continua a pairar sobre Ray Milland.
Daí que este filme (que
começa com o fabuloso grande plano do pêndulo do relógio) seja sobretudo um
filme sobre o tempo: nesse início, sentado na penumbra, Ray Milland parece
esperar uma libertação da prisão (sabemos depois que estava num hospital).
Quando é libertado, os seus actos falhados continuam a ser (e até ao fim)
auto-punitivos, tudo se repetindo, tudo pontuado por esses relógios (de novo, a
sequência do espiritismo) que parecem espelhar para ele a agonia da culpa
(sentida junto à primeira mulher) e a do desejo (por e de Marjorie Reynolds).
Primeira incursão de Lang
nos domínios da psicanálise, Ministry of
Fear é um filme detido (nas inúmeras peripécias que o compõem) entre esse
lento decorrer de segundos (inicial) e a vertiginosa sucessão de acontecimentos
finais. O foco da luz da enfermeira e o ponto luminoso aberto na porta pelo
tiro fratricida de Marjorie Reynolds. Só que nenhuma dessas “pequeninas luzes”
consegue clarificar a teia de culpa em que o protagonista definitivamente se
enredou.
Por isso Luc Moullet tem
razão quando diz que não é de Graham Greene que Ministry of Fear releva mas de Kafka. E quando acentua que a teia
de Lang nunca foi tão elaborada. Todos
ficamos presos e enredados nela. Todos
quebrámos o círculo.
JOÃO BÉNARD DA COSTA
(folhas da Cinemateca
Portuguesa)
Cineclube Sesi: "O Homem que quis Matar Hitler", de Fritz Lang
ResponderExcluirInterpretações atrasadas, de Konrad Yona Riggenmann (ex-prof. de historia na esc. publ. alemã)
Já durante a apresentação no dia 4 de setembro, eu me perguntei por que o cineasta famoso construiu uma historia com tantos detalhes absurdamente improváveis, por exemplo:
• O caçador inglês Alan Thorndike perseguindo o “Herr Wolf” (Senhor Lobo; Hitler gostou deste apelido) até a montanha da Bavaria só para atirar a ele com um rifle de alta precisão não carregado, e no segundo ensaio, nessa vez com arma carregada, fracassando pelo acaso de uma folha caída no fuzil da arma um segundo antes do disparo;
• A promessa dos nazistas de libertar o quase assassino do Redentor Adolf Hitler sob a condição que Thorndike assinar uma confissão dizendo que ele agiu sob ordens do governo britânico;
• A tentativa diletante de matar o Thorndike jogando ele num abismo, e a maravilha de ele sobreviver porque a mochila dele, enganchada numa arvore, ter freado a queda;
• A caverna troglodita bem equipada onde aconteceu o ato final de matar não Hitler, mas o nazista Quive-Smith, com arma tipo caçador neolítico: arco e flecha;
• O fim com o salto do superman protagonista, tendo sobrevivido até o tiro final do Quive-Smith, de para-quedas dum avião americano, equipado apenas com, de novo, um rifle de alta precisão e dedicado a uma só proposta: eliminar o tirano, vingando a morte da amada e impedindo a catástrofe.
Se um produtor austríaco, filho de mãe judia, fugido da Alemanha depois de ter rejeitado a oferta de colaboração pelo ministro de propaganda Joseph Goebbels, produziu, no ano 1941, um filme com ro-teiro tão mal construído, as construções improváveis provavelmente giram acerca de elementos que o Fritz Lang urgentemente quis visualizar – ou reencenar.
No meu ver, estes elementos são os seguintes: armas
alvos
1. O contraste de arma altamente sofisticada (rifle com telescopo) com arma arcaica (arco e flecha), simboliza o dever humano atemporal de impedir o regresso á bar-baridade, atacando o centro dela. Feito com a brocha que ele comprou para a amada, a flecha simboliza tam-bém o amor humano, unindo assim a morte do bárbaro anti-humano com o motivo mais alto do ser humano, “pois o amor é tão forte quanto a morte, e a paixão tão forte quanto o sheol. As flechas dela são de fogo, uma lança de chama” (Cânticos 8:6). Só a construção dramática da caverna dava oportunidade para usar a flecha de amor e morte, disparada pelo buraco de janela.
2. O segundo elemento, como fator decisivo da psicológica pessoal do homem Fritz Lang (1890-1976), é a reencenação cinematográfica da morte da primeira esposa dele. No ano 1919, Lang se casou em Berlin com Lisa Rosenthal. No dia 25 de setembro 1920, Lisa morreu por um tiro do revolver próprio de Fritz Lang. Provavelmente ela se suicidou no momento quando reconheceu que o marido teve relacionamento amoroso com Thea von Harbou, amiga dele já desde antes do casamento com Lisa. Por toda a vida, Lang ocultou o seu primeiro casamento trágico. Em agosto de 1922 ele se casou com Thea. O segredo traumático “provavelmente fortemente influenciou a sua escolha de sujeitos de filmes, como culpa, envolvimento fatal, morte e suicídio”, o site do Wikipédia alemão constata, e a frequência da palavra “provavelmente” neste texto provavelmente tem de ver com as improbabilidades da construção do filme, no sentido de reencenação do trauma no teatro terapêutico de Jacob Levy Moreno, que também foi compatriota e contemporâneo de Lang e Hitler. Aliás, divorciada de Lang desde 1933, Thea von Harbou virou membro do partido nazista em 1940.
3. “Os sujeitos de Lang ... frequentemente se baseavam em relatos da imprensa”, Wikipédia remarca. Certamente Lang viu relatos e fotos sobre o carpinteiro alemão Georg Elser. Será que a semelhança dele com o protagonista Thorndike é mera coincidência?
ExcluirGeorg Elser: Na banda musical, com filho ilegítimo, na prisão, na interrogação
Thorndike,
“O homem
que quis
matar
Hitler”
Este “homem que quase matou Hitler” bem merece ser comemorado:
Nascido em 1903 como filho ilegítimo de uma trabalhadora rural perto de Ulm (onde Albert Einstein nasceu), o carpinteiro Georg Elser desde novembro 1938 se dedicou a matar Hitler, na ocasião do discurso anual dele na adega de cerveja “Bürgerbräu” em Munique, no dia 8 de novembro 1939. Para poder desviar explosivo em pequenas parcelas, Elser tomou emprego numa pedreira. Em agosto 1939 mudou para Munique.
Jantou todas as noites no Bürgerbräu, se escondeu sob as mesas quando a adega fechou e trabalhou na escuridão, nos joelhos, escavando o pilar atrás do púlpito, sempre removendo todos os traços antes da abertura da adega, e foi se embora para construir, durante os dias, um mecanismo de ignição usando um despertador comum. Depois de 30 noites de trabalho ele colocou a bomba no pilar, atrás dos painéis de madeira, e saiu de Munique. Foi de trem para a cidade de Konstanz, tentou atravessar de pé a fronteira á Suiça, foi arrestado ás 20:45 h no dia 8 de novembro.
35 minutos depois, ás 21:20 h, a bomba explodiu exatamente no minuto programado, matando 8 pessoas ao redor do pilar. Por causa do mal tempo, Hitler teve saído do local ás 21:07 h, para voltar de trem, em vez de avião, a Berlin. Na interrogação no dia seguinte, os seus joelhos inchados traíram o Georg (Jorge) Elser.
No dia seguinte, um comando da SS sequestrou dois oficiais britânicos na fronteira holandesa, para interroga-lhes sobre o suposto agente britânico Georg Elser. Porém, as interrogações comprovaram que Elser teve cometido o atentado numa ação absolutamente solitária e dedicada.
Até hoje a Alemanha comemora cada ano no dia 20 de julho o atentado fracassado do grupo de oficiais do exercito liderados pelo coronel von Stauffenberg, o marechal Rommel e outros. Estes generais, bem formados e muitos deles membros da velha aristocracia, com obediência bem alemã tiveram ajudado Hitler durante cinco anos, comandando uma guerra com milhões de vitimas entre Coventry e Stalingrad, antes de finalmente rebelar-se contra o líder carismático. Bem diferente, Georg Elser nas torturas e interrogações constatou que o motivo seu foi o claro reconhecimento, já em 1938, das intenções de Hitler. “Eu quis impedir a guerra”, o carpinteiro disse, e como membro do sindicato dos trabalhadores de madeira e da “Liga Vermelha de Combatentes da Frente” ele bem sabia que o governo Hitler teve reduzido os salários dos trabalhadores para financiar a guerra. Elser ficou preso no campo de concentração de Dachau onde produziu moveis artísticos para os guardas da SS. Hitler, que planejou apresentar o seu “inimigo especial” Georg Elser, depois da vitoria final, num tribunal de propaganda como agente britânico, mandou matar, quatro semanas antes do suicídio próprio, o Georg Elser no dia 9 de abril 1945.
A suposição que Georg Elser foi o modelo de Alan Thorndike baseia-se nas paralelas seguintes: 1) a semelhança exterior; 2) a dedicação interior (evidente na declaração aberta dele na caverna, que parece muito com a confissão do cabeleireiro judeu Chaplin ao microfone do Grande Ditador); 3) a implicação do governo britânico; e 4) o fracasso trágico do atentado por coincidência fatal.
Este fracasso de Elser foi imenso de verdade: A partida antecipada por 13 minutos que “por previdência” salvou a vida do Führer, saíu caro na morte de 50 milhões.