(Feras Humanas/O homem que quis matar Hitler)
Um filme de Fritz Lang
Primeira obra de temática
anti-nazi da obra de Lang, Man Hunt
é o filme dos espaços cerrados e dos sons abafados, lugar da música de
Newman, dos muito lentos avanços da câmara (ou para a câmara) da seta “in the wrong heart” (ou “in the right?”), de Joan Bennett “straight and shining” na primeira das
suas quatro aparições no mundo de Lang. É o filme que faz tanta pena, o filme
das muitas saudades. É Fritz
Lang a dizer (falando de Joan-Jenny): “I
must admit she had all my heart” (...) “This love affair - in those days you
could still say love without being laughed at - the tenderness of it”.
Lang deu-nos algumas vezes
mulheres assim: Lil Dagover (Der Müde
Tod), Madeleine Ozeray (Liliom),
Sylvia Sidney (You Only Live Once),
Lilli Palmer (Cloak and Dagger),
Gloria Grahame (The Big Heat); mas
nenhuma teve “so much on her” como
este incrível personagem que o Código Hays e Zanuck estiveram quase a censurar
(a máquina de costura, em evidência, no quarto de Jenny, foi lá posta - contou
Lang - para disfarçar a sua profissão, a tal que se diz ser a mais antiga do
mundo). E a inenarrável sequência da ponte de Londres, talvez a mais bela cena
de amor da história do cinema (entenda-se a mais bela em sentido godardiano)
esteve quase para não existir porque Zanuck a achava ridícula (“Quando uma pega faz de pega diante do homem
que ama - não pode ser trágica. Só quando uma rapariga séria – ‘a decent girl’
- faz de pega, é que pode haver tragédia”. Terá havido alguma vez uma “decent girl” como Jenny?
Fritz Lang, na entrevista a
Bogdanovich, fala dela durante páginas. Apetecia-me segui-lo. Falar, por
exemplo, da sequência da primeira noite de Jenny e Thorndike e - cito Lang - “da rapariga que chora como uma criança
porque o homem que tanto quer (‘she wants so very much’) não vai para a cama
com ela. Há tanta coisa nisso: vergonha ‘talvez não esteja à altura dele’-
desejo ‘porque é que o não posso satisfazer?’”. Falar dos sorrisos que se
seguem a essas lágrimas. Falar do fabuloso plano, que precede essa noite,
quando Walter Pidgeon está à janela. Falar da sequência da compra da seta.
Falar da elipse que se segue ao genial contracampo, quando Jenny chega a casa e
descobre “a espera” (“recusou-se a dizer-nos o que quer que fosse”). “The death of a girl like that
can be no loss at all”. A
girl like that…
Mas não tenho páginas e
páginas e há outras coisas quase tão importantes como Bennett neste filme
fundamental.
Vou pôr ordem nisto. Para
começar, recordarei que o primeiro filme anti-nazi de Lang não foi uma escolha
deste. O magnífico argumento de Dudley Nichols (baseado no romance de Geoffrey
Household, Rogue Male, o que
literalmente quer dizer “O Safado”) já estava nas gavetas da Fox, quando Lang
foi escolhido para o filmar, substituindo John Ford em quem Zanuck inicialmente
pensara. Só que um argumento (Nichols o disse) é um borrão e o que Lang fez
dele é que é Man Hunt.
Continuo, discutindo a caracterização
“filme anti-nazi”. Se o contexto é inegável, já me parece discutível que o
cerne do filme seja esse.
Vamos ao princípio: numa
fabulosa floresta (que podia vir dos anos 20 alemães) a câmara avança em travellings muito lentos até descobrir
uma pegada, e depois outra (grandes planos). Só depois vemos (em plano
americano) o dono desses pés: Walter Pidgeon. Tudo o caracteriza como um
caçador (espingarda, chapéu tirolês). Não há música e há um vago vento. Depois
vemo-lo deitar-se no chão e preparar a arma (grande plano do regulador,
intercaladamente repetido). Até que vemos o que ele vê. No ponto de mira da
objectiva telescópica, Adolf Hitler. Pidgeon visa bem, tem Hitler bem no centro
dos seus e nossos olhos e prime devagar o gatilho. Mas não há bala. Só depois a
mete no carregador e volta a apontar. É tarde de mais. Os homens das S.S. já
lhe caíram em cima.
Porque é que Pidgeon não
meteu logo a bala no carregador e perdeu tanto tempo? A Quives-Smith dirá (no
interrogatório inicial) que não vinha para matar Hitler, e que nesse momento o
que quis foi saborear o prazer da caça, o prazer de ter a presa (e que presa!)
à sua mercê. Quives-Smith, também caçador (o tema do “most dangerous game” domina este filme) percebe-o mas duvida. O
espectador também. E contudo é misterioso porque é que Thorndike não disparou.
Por “necessidade do argumento” (o filme acabaria ali)? Por “verosimilhança
histórica” (em 41, o Führer estava bem vivo)? Não são explicações plausíveis,
porque era sempre possível movimentar Hitler inesperadamente, de modo a que o
atentado falhasse.
Quando Bogdanovich lhe fez
essa pergunta, Lang classificou-a de “muito inteligente” e observa que se tinha
esquecido disso (“Talvez seja um lapso
freudiano - não sei” (...) “Quando revi o filme tive a mesma sensação, mas não
posso - em verdade - dizer-lhe que o facto dele não disparar foi qualquer coisa
subconsciente em mim”. Não vou ser mais papista que o papa: mas esse lapso
inicial de Thorndike, é o prenúncio do comportamento em lapso do personagem, ao
longo de quase todo o filme. Nunca sabemos se Pidgeon actua deliberadamente, ou
se o seu comportamento é fruto de circunstâncias. Se é um caçador, se é um
resistente. O que é sintomático é que na última caçada (em que se
transforma de presa em caçador), a do arco e flecha, dentro do buraco,
Thorndike repita a Quives-Smith a versão inicial, para dizer a seguir, que agora
e só agora (quando sabe da morte de Jenny) o “jogo” se vai transformar em
luta de morte. Onde eventuais razões colectivas não funcionaram, funciona uma
razão pessoal: Thorndike vai vingar a morte de Jenny. Essa é a diferença entre
o início e o fim do filme. No princípio Thorndike é, pelo menos, indeterminado.
No fim, sabe precisamente o que quer. E no avião vemos pela última vez a seta,
que começara por ser enfeite de Jenny, passou depois a signo substituitivo
dela, (é Pidgeon quem as identifica no “straight
and shinning”), volve-se em sinal de morte e, por fim, em instrumento de
vingança, em arma cravada no “right
heart” (Quive-Smith). A seta é a imagem que atravessa o filme, mais do que
fetiche, símbolo, ou qualquer outra explicação pacificadora.
Ao longo da obra (mas não
se chama ela Man Hunt?) o tema da
caçada prevalece. É um filme de sucessivas emboscadas e de sucessivos ardis (o
“acidente” na Alemanha, o metropolitano de Londres - fabulosa sequência com o
portentoso Carradine - o covil final).
Em Man Hunt perfila-se sempre uma estrutura lúdica (o ludus, associado à morte como forma
suprema de prazer), dominado, quase desde o início, pelo contraste de claros e
escuros (xadrez) que acompanha o primeiro encontro entre os dois caçadores.
Permanentemente a
descoberto e permanentemente cobertos (da floresta, ao barco e ao esconderijo,
da casa de Bennett ao metropolitano, do covil à fresta exterior) os protagonistas
da caçada (ou os seus sequazes) vão descendo aos seus próprios abismos,
numa progressão magistral: da floresta sombria e do gabinete de Sanders
passa-se para a “queda” cada vez mais subterrânea: alçapão do barco, metro,
para tudo acabar num buraco, com cerco completo feito em torno de Pidgeon. O
que o salva é um imponderável chamado mulher. A “intromissão” feminina na caça
de homens dita-lhe o desfecho, introduzindo a dimensão que, viril e
impotentemente, se haviam recusado a admitir em toda a sua verdadeira
grandeza.
E o jogo-caça dos
personagens é “emoldurado” como em tantos outros filmes de Lang, por o absurdo
dum “jogo social” (a sequência da casa do diplomata) que impõe os códigos que
só Joan Bennett - sempre ela - desarruma e desarticula, perante a complacente
incompreensão de Pidgeon, demasiado metido neles para lhes descortinar o
alcance. Entre Thorndike e Jerry, interpõe-se não só o jogo mas a ordem
(outra forma de afirmar o mesmo) como é visível na sequência da ponte em que a
intervenção do polícia (entre o nevoeiro e o candeeiro) não quer dizer
outra coisa.
Como entre Thorndike e
Quives-Smith (personagens de certo modo contrapolares, duplos um do outro, pelo
seu estatuto social e pelo seu estatuto lúdico) se interpõe a necessidade de
quebrar a regra do jogo. “Desde
que atravessou a fronteira, tornou-se um assassino inconsciente”, diz
Quives-Smith a Thorndike no início. Efectivamente, Thorndike só atravessa a
fronteira, quando sabe da morte de Jenny. E só nessa altura é um assassino
consciente. “A girl like that”
diz Sanders; “your little Caesar”,
diz Pidgeon. Ambos menosprezam o valor das presas. Só no fim, a caça
passa a chamar-se guerra. E a dimensão colectiva - donde o fundo documental das
sequências finais - sobrepõe-se - definitivamente - à dimensão individual que
até às suas “morte” e “ressurreição” sempre fora a de Pidgeon.
Mas para passar de uma a
outra teve que realizar a inversão dos seus códigos morais (em função de
Bennett) e a inversão dos seus códigos de combate (a assunção da primitividade
no fundo do buraco). Teve, ele também, que dar razão a Sanders: “O homem é o mais perigoso dos animais”.
Sobretudo quando está ferido.
JOÃO BÉNARD DA COSTA
(Folhas da Cinemateca Portuguesa)
(Folhas da Cinemateca Portuguesa)
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Texto originalmente escrito antes da entrada
em vigor do novo Acordo Ortográfico
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