(Desejo Humano)
Um filme de Fritz Lang
Human
Desire é o
segundo remake que Fritz Lang fez de
filmes de Renoir. Scarlet Street, remake de La Chienne, em 1945, foi o primeiro. Human Desire, remake de La Bête Humaine, foi o segundo. E
começo por sublinhar que Lang escolheu os filmes que, na obra de Renoir, abrem
e fecham a sua controversa fase realista, ou fecham e abrem a sua primeira fase
“artificiosa” (do artifício da commedia
dell’arte) e anárquica e a última fase que sempre e sobretudo foi tais
coisas.
Os códigos vigentes em Hollywood, à
época de Human Desire, tornavam
obviamente impossível seguir o fio condutor do filme de Renoir, baseado em
Zola. Em La Bête Humaine (tanto em
Zola como em Renoir) a personagem central (ou seja aquela que aqui é
interpretada por GLENN FORD) carrega o peso de taras genéticas várias
(naturalismo e realismo em Zola, estraneidade absoluta em Renoir) que fazem
dele a presa de instintos sexuais indomináveis (o prazer sexual em função do prazer
de matar). No livro e no filme de Renoir, mata o personagem que Broderick
Crawford interpreta aqui e suicida-se por fim, como única possibilidade
(sobretudo em Renoir) de libertação.
Quando Fritz Lang propôs a Jerry Wald
(produtor do filme) este remake do
filme de Renoir, Wald sublinhou-lhe que, de forma alguma, se podia ter um herói
à Gabin, um tarado sexual. Como Lang explicou, “GLENN FORD tinha que ser um personagem género Lil’Abner regressando da
Coreia - com cem por cento de sangue encarnado americano, com impulsos sexuais
naturalíssimos (se é que tal coisa existe)”.
Além disso, Jerry Wald via símbolos
sexuais por toda a parte, até nos comboios a entrar nos túneis e preveniu Lang
contra quaisquer excessos dessa natureza. Por isso Lang declarou aos Cahiers que já estava tudo estragado à
partida e que Human Desire não é La Bête Humaine.
Lang contou também outra interpretação
curiosa: apesar de ser necessário que FORD nada tivesse da dita besta, Jerry
Wald continuava agarrado ao título inicial. Por isso, um dia chamou Lang e
Alfred Hayes (o argumentista, e como o Autor disse “provavelmente os únicos que tinham lido o livro de Zola”) e
disse-lhes: “Vocês só fizeram erros.
Perguntei-lhe: O que é que fizemos
desta vez Jerry? Respondeu-me: Reparem. O livro chama-se ‘La Bête Humaine’, a
besta humana. Ora, neste filme, toda a gente é má. Com certeza - objectei -
pois Zola queria mostrar que em cada ser humano há um animal. Então disse-me:
Nenhum de vocês percebeu nada. A mulher é que é ‘la bête humaine’. O que é que
se pode fazer contra o produtor? Hayes e eu olhámos um para o outro e tentámos
convencê-lo. Chegámos então a um compromisso e novamente tudo se transformou
numa história triangular. Eram tempos bonitos”.
Quem tomar à letra esta história pode
dizer que tudo estava, de facto, estragado: GLENN FORD passa a comparsa neutro
do “drama” (acabará provavelmente por se casar com a rapariga de quimono e será
muito feliz), Gloria Grahame morre porque é la
bête humaine e Broderick Crawford não é morto, para não se fazer de GLENN
FORD um assassino.
Só que nada disto se passa, a não ser
a um nível muito primário. Se FORD não tem taras hereditárias, vem marcado da
guerra (capital diálogo com Gloria Grahame em que lhe explica a diferença entre
matar a sangue frio e matar na guerra: “in
the war we kill in the dark, it’s a different kind”, depois de ela
acentuar: “you tried and you couldn’t”
como efectivamente sucedeu) e essa experiência em off (como todas as situações capitais do filme - em off nos é dada a morte de Owens, em off - sequência inadjectivável - nos é
dada a tentativa de assassinato de FORD com o comboio a interpor-se à nossa
visão) marca a personagem, desde o princípio, como estranha (primeiro encontro
com Ellen, em claro-escuro e realização da impossibilidade do antigo sonho: “a little fishing; a night at the movies”
quando ouve a questão sobre o mais importante: the right girl). Além disso, FORD é efectivamente cúmplice do crime
pelo seu silêncio (portentosa sequência do tribunal) e é efectivamente presa do
human desire (a incrível relação
física com Gloria Grahame). Os cigarros e o lume sempre trocados entre eles
(aproximar com idêntica sinalização nas sequências inicial e final entre FORD e
o pai de Ellen) são a clara indicação de que um mesmo fogo os consome. O que é
ainda mais patente na sequência (com a passagem do homem das luzes) entre FORD
e Grahame, quando a ideia do crime (the
easiest thing) se associa ao culminar da relação erótica (o beijo
espantoso, com os cabelos puxados).
Se GLENN FORD acaba por ignorar o
último crime (a morte de Grahame) é ele quem conduz o comboio, onde, mais uma
vez, tudo se passa. Única testemunha ocular da presença de Grahame no primeiro
crime, a sua ausência já é a única coisa que para ele conta no segundo, que, de
certo modo, lhe arranja a vida. E não será certamente ele (nem nós) que
ignorará the human beast, que tem
dentro de si.
The
human beast
está também dentro de Gloria Grahame, sem que por isso ela se transforme no
único animal do filme, como Jerry Wald queria. Este assombroso personagem,
assombrosamente criado por uma das mais assombrosas mulheres de Lang (que,
neste caso, teve a sorte pelo seu lado, pois a Columbia queria Rita Hayworth
naquele papel) é um prodígio de ambiguidade, desde o primeiro plano em que a
vemos, na cama, com a perna levantada, em imagem invertida, até à sua confissão
final e total ao marido (“I wanted Owens
too - I wanted him to get rid of that wife - I admired him for it”)
passando, entre tantas coisas sublimes, pelo plano em que mostra as nódoas
negras a FORD.
A progressão das suas confissões (a
Crawford e a FORD) é uma das coisas mais geniais desta obra, com Gloria Grahame
sempre a avançar em semi-verdades, semi-mentiras (metade do rosto na sombra,
outra metade na luz). Mas ela é a mulher capaz de ir até ao fim: ou à total
confiança (que pede e jamais lhe dão) ou à total assunção da sua nudez, frente
à impotência dos dois homens que a cercam.
Finalmente, Broderick Crawford,
transformado em protagonista do filme. Recapitulando outras figuras masculinas
de meia idade da obra de Lang, outros personagens do démon du midi (Robinson em Woman
in the Window e Scarlet Street,
Paul Douglas em Clash by Night) é,
simultaneamente, o mais abjecto personagem do filme e o mais grandioso. Capaz
de prender a mulher associando-a ao crime (“reconquistar
o outro, associando-o à culpabilidade num crime mítico”, como bem notou
Demonsablon) tudo tenta para a conservar, até à devolução final (e tardia) da
carta, de que já fora privado. O instável equilíbrio inicial da personagem,
rompe-se pelo ciúme e por tudo aquilo a que o ciúme o leva. E dizer ciúme é
ainda ficar aquém: o que Broderick Crawford assume é a danação (e de novo
remeto para a notável análise de Demonsablon, que vê neste filme uma variação
do mito do Fausto). Por isso, como
Robinson em Scarlet Street, a morte
é a possibilidade impossível (esgotadas todas as outras) de deter Gloria
Grahame e de finalmente a fixar. A confissão que ela lhe faz do amor por Owens
(seu padrinho, como Crawford tenta ser seu pai) ficará provavelmente a
ecoar-lhe tanto na memória (e ficará nas nossas) como o “Jeepers, I love you, Johnny” do Scarlet Street na memória de Robinson.
É em torno de Crawford que a figura
da tragédia se articula. Neste filme construído em espaços fechados, em que
todos os acontecimentos capitais ocorrem dentro de comboios ou em torno deles,
a imagem dominante é a que contorna tal figura: a imparabilidade e a contracção.
Desde os travellings iniciais (quando
nós também somos metidos no comboio) que não há “lugar para onde fugir”, como no escuro, na grande cena de
erotismo, Gloria Grahame diz a GLENN FORD. No espaço do desejo, as confissões
estão bloqueadas (pasmosa sequência das lágrimas de Gloria, deitada na cama, de
costas) tanto quanto a capacidade de confiança.
Human
Desire não
será o livro de Zola, nem o filme de Renoir. Não tinha que o ser, pois já
estavam feitos. Mas não lhes é inferior e (as linhas paralelas) é o filme que
só admite encontros no infinito. No microespaço em que se agitam les bêtes humaines, os encontros
vedam-se, os olhos embaciam-se e o ponto de vista de Lang (nos high angles deste filme) é o de um olhar
inexistente e existente que não pode parar o que é imparável, que não pode
chorar o que é inexorável.
Mas uma vez, em Lang, a ordem moral de
Renoir (ou a desordem moral de Renoir) se transforma, em metafísica. As
fronteiras são próximas e bastou a Lang puxar por um dos fios condutores - a
inexorabilidade - para passar do tratado das paixões ao tratado de metafísica.
JOÃO BÉNARD DA COSTA
(Folhas da Cinemateca Portuguesa)
(Folhas da Cinemateca Portuguesa)
Nenhum comentário:
Postar um comentário