sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O RAIO VERDE, Eric Rohmer, 1986

por João Bénard da Costa

Muito pequeno eu era quando vi e possuí, pela primeira vez, a reprodução da tela de Filippo Lippi chamada A Adoração do Menino Jesus, que está em Berlim, na Gemälde Gallerie. O quadro representa o nascimento do Menino. Mas o menino não está em nenhum presépio. Muito louro, muito rechonchudo, de dedo na boca, não tem o corpo deitado em nenhumas palhinhas mas nas ervas macias de um prado verdejante. Muitas florinhas à roda. A paisagem corresponde a um desfiladeiro, mas não transmite qualquer impressão de aspereza ou de perigo. Tudo é verdíssimo, verde musgo, dessa cor que, muito mais tarde, aprendi a associar aos jardins do Éden. Se o céu é azul, como desde Fra Angélico sabemos, o Paraíso é verde, de verde desse verde como só no Paraíso houve, como só na Mata Coberta da Arrábida há. Um verde que apetece lamber, que apetece comer e que absorve todas as outras cores do quadro, desde o manto azul celeste da enorme Virgem até ao encarnado da túnica de Deus Pai, que, lá em cima, preside à Adoração. Entre o Pai e o Filho, a Pomba do Espírito Santo despeja uma chuva de raios dourados sobre o Menino. Mas mesmo esse ouro se esbate no verde, verde de perdição, verde que também se encontra em Masaccio, mestre de Lippi, verde que também passou a Botticelli, por exemplo àPrimavera. Mas em nenhum deles o verde é tão convidativo, tão sonhador como neste quadro de Fra Filippo, que aguardei trinta e sete anos para ver em carne e osso, em Berlim, correspondendo a tudo o que durante trinta e sete anos imaginara.

Muito pequeno eu era - menos pequeno, mas ainda tanto - quando li Le rayon vert de Júlio Verne na velha tradução portuguesa da Aillaud e Bertrand, tradução de um “oficial da armada” chamado V. Almeida d’Eça. Júlio Verne ensinou-me que o último raio de sol sobre o mar, em tardes limpidíssimas, era da cor do verde de Filippo Lippi. “Um raio de um verde maravilhoso, de um verde que nenhum pintor conseguiu jamais com a sua paleta” (obviamente, Júlio Verne nunca viu o quadro de Filippo Lippi) “um verde de que a natureza nunca reproduziu as gradações, nem nos tons variados dos vegetais nem na cor dos mares mais claros. Se o Paraíso é verde, é verde como esse raio, que é, sem dúvida, o verdadeiro verde da Esperança.”

Quem leu o livro, sabe que o protagonista percorreu trópicos e equadores para conseguir ver esse raio, o que só no fim conseguiu. Mil vezes, em crepúsculos transparentes, mil acidentes impediram a transparência total. Uma nuvem derradeira, a vela dum barco. O raio verde é dificílimo de ser visto. Mas, se se acreditar em Miss Campbell, personagem de Verne, quem vir o raio verde nunca mais se enganará em coisas de sentimentos. Ilusões e mentiras dissipam-se à visão dele. “E aquele que for tão bem-aventurado que o consiga ver uma vez só, uma vez só que seja, passa a ver claro no próprio coração e no coração dos outros.”

Eric Rohmer lembrou-se da história de Júlio Verne para o quinto filme da série a que chamou “Comédies et Proverbes” e que se iniciou em 1981 com La femme de l’aviateur. Mas, ao contrário de La femme de l’aviateur, de Le beau mariage, de Pauline à la plage e de Les nuits de la pleine luneLe rayon vert, integrado na série, não abre com nenhum provérbio. A epígrafe inicial é um verso de Rimbaud: “Ah! Que le temps vienne / ou les coeurs s’éprennent.” Sempre estabeleci, mas deve ser coisa minha, uma relação obscura entre esta epígrafe e o provérbio, esse sim, que introduz Les nuits de la pleine lune: “Qui a deux femme / perd son ame. / Qui a deux maisons / perd sa raison.” Para chegar o tempo do raio verde, para chegar o tempo em que se pode ver claro dentro de nós e dentro dos outros, para chegar o tempo em que as almas se fundem, é preciso terem acabado já as perigosas noites de lua cheia, não haver várias mulheres nem várias casas. Le rayon vert, na série “Comédies et Proverbes”, é o filme mais só, é o filme mais desamparado.

Solitária e desamparada é a secretariazinha Delphine (Marie Rivière). Os adjetivos não me ajudam muito e não a ajudaram nada a ela. Delphine, desde que uma amiga lhe pôs os cornos e, em vez de passar férias com ela, resolveu passar férias com o namorado, na Grécia, se é solitária e desamparada, é chata como as coisas chatas. Como construir um filme sobre uma protagonista que não é bonita nem simpática e nos melhores momentos apenas nos faz uma certa pena? Como construir um filme com uma protagonista que chora baba e ranho porque queria passar férias em boa companhia, não o consegue e chateia de morte toda a gente que não tem culpa nenhuma disso? Como construir um filme sobre uma protagonista que não diz nada de particularmente interessante e se limita a desbobinar lugares comuns sobre astrologia, relações humanas, solidão e amor e a falar, falar, falar, sem que da boca dela saia uma só frase que retenha a nossa atenção? Já não me lembro quem, comparou-a a uma personagem de Simone Weil, insignificante e pobre, mas à procura de Deus. Eu penso mais no que Péguy escreveu sobre a Santa Teresinha do Menino Jesus, quando pôs Deus a dizer aos anjos qualquer coisa como isto: “Julgam que para fazer santos preciso de gente muito especial? Vou pegar uma mulher parvíssima, limitadíssima, possidoníssima e, com essa matéria, vou fazer a santa que vos há-de espantar a todos.” Rohmer pegou em Marie Rivière e fez essa Delphine, mais irritante que todas as burguesas dele (e, meu Deus, como ele sabe fazer burguesas irritantes!) e construiu a personagem que é aquela que mais me espanta em toda a história do cinema. Porque, sem ponta por onde se lhe pegue, sem ponta que se nos pegue, não conseguimos despegar os olhos dela, sentindo, contra a personagem e contra a atriz, que dali vai acontecer qualquer coisa de espantoso. Mas Rohmer é o último dos cineastas que sabe que o essencial, no cinema, não é da ordem da linguagem, mas da ordem do ontológico. E todas as paixões de Rohmer, de Hitchcock a Mizoguchi, de Murnau a Rossellini, pegaram em Delphine e a levaram de Cherbourg para Biarritz e de Biarritz para Saint-Jean-de-Luz, para transfigurar à luz do raio verde. 1986 foi o ano.

Pode-se dizer que Delphine é uma personagem apanhada no que Huysmans chamou melancolia. “A vítima da melancolia mantém com o espaço a mais dolorosa das relações. Ou lhe falta espaço, ou o espaço lhe sobeja. Tem horror à finitude dele, mas a sua infinitude aterroriza-a da mesma maneira. Daí a busca melancólica das viagens e das distâncias: ao desorientado, as viagens prometem um fim, aos cativos uma evasão.” Talvez seja por isso que, entre uma segunda-feira, 2 de Julho, e uma segunda-feira, 6 de Agosto, Delphine tanto procure nas viagens o que quer e não sabe o que é. Encontros extraordinários só tem três: ainda em Paris, no Museu Guimet, uma estátua antiga de um atleta nu. Uma amiga mete-se com ela: “Do que tu precisas, é de um homem assim: bonito e sujo”. Bonito e sujo? O segundo encontro extraordinário dá-se em Cherbourg. Num dos seus passeios erráticos, encontra, caída no chão, uma carta de Tarô. Volta-a e é a Dama de Espadas. Não é muito usual encontrarem-se cartas dessas caídas no meio do chão.

A Dama de Espadas vai presidir a tudo o que se pode chamar o “buraco negro” de Le rayon vert: as férias insuportáveis em Cherbourg, o regresso efêmero a Paris, a viagem para as montanhas, finalmente Biarritz, insuportável como Biarritz em Agosto. De vez em quando uma cor mais verde: bosques onde ela passeia, fatos de banho de turistas, umas escadas junto ao mar verde. E é numas escadas dessas que ela reencontra, caída, uma segunda carta de Tarô: agora um Valete de Copas. Estamos perto do fim do filme e começamos a perguntar por que é que ele se chama Le rayon vert e qual a relação com o livro de Verne. Até que, junto às mesmas escadas, Delphine ouve, casualmente, a história do raio verde, contada por uns turistas entradotes que resumem o livro e dizem, todos, já o terem visto, ao menos uma vez. Delphine não entra na conversa, os turistas nem reparam nela. Mas é a partir desse momento que o raio verde começa a funcionar e a mudança de Delphine começa a dar-se. Uma sueca de topless desafia-a para uns engates. A coisa até funciona, mas Delphine continua a não funcionar. Chegada a hora de mais verdade (é verdade que verdade bem rasteira) foge ao companheiro que a escolhera e corre escada abaixo, outra vez a chorar que nem um bezerro. Decide voltar a Paris. E é na estação, enquanto lê O Idiota de Dostoievsky (livro que esteve a ler durante todo o filme), que lhe aparece um rapaz, igual a todos os outros, mas que, ao contrário de todos os outros, l’éprenne. É ele que lhe propõe um fim de semana em Saint-Jean-de-Luz. Já na praia, propõe-lhe ficarem juntos. A tarde, uma tarde limpidíssima, sem uma nuvem, chega ao fim. Antes de lhe responder, Delphine pede-lhe que se afastem um pouco até junto ao mar. “Sim ou não?”, pergunta-lhe o rapaz. “Espera”, responde-lhe Delphine e vemos o sol a pôr-se no mar. O último raio de sol. E Delphine, num júbilo indescritível: “Sim.” O sim mais jubilatório do cinema.
Eu nunca vi o raio verde. Ouvi dizer que Rohmer, que filmou Le rayon vert em 16 milímetros, câmera à mão e sem qualquer script prévio, gastou metade do pequeníssimo orçamento que teve a mandar segundas e terceiras equipas do filme para todos os pontos da costa francesa, a fim de filmar o raio verde. Vi o filme dezenas de vezes e, seja ou não seja daltônico, nunca consegui ver o raio verde que Delphine viu no fim. Há um sol redondíssimo e amarelíssimo, há um mar todo azul, mas verde eu não vi. Mas acredito que Delphine viu o raio verde e que, a partir desse plano, plano final do filme, outra Delphine existiu e uma espantosa história de amor começou. Se não é este o milagre do cinema, não sei nem o que é milagre nem o que é cinema.

Como Rohmer uma vez disse: “No cinema, a imagem do mundo exterior forma-se automaticamente, sem a intervenção criadora do homem. Todas as artes estão fundadas sobre a presença do homem. Só no cinema fruímos da sua ausência.” Le rayon vert, a obra mais mágica que os anos 80 me deram, é esta presença e é esta ausência.

Texto extraído de: http://focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-raioverde.htm

4 comentários:

  1. Cheguei em casa e lembrei que errei completamente as “Béatrice” no debate de hoje sobre O Raio Verde. Era Béatrice Romand, e não a Dalle que falei, que justo naquele 1986 estava muito mais ocupada com Beineix filmando, sob a mesma França, o oposto da economia que trabalhava o ascético Rohmer.

    Era de Romand que então falava, aquela que nasce para nós estridente e horrível, desajustada e terrível, portando tal máxima internamente: se as coisas não estão boas para mim para mais ninguém estarão. Era deste nada belo “mariage” conosco que Béatrice impedia-nos a criação de qualquer laço consigo. Mesmo pensando nos filmes anteriores, deve ser a primeira vez que Rohmer assume realmente, sem algum problema, a chatice de uma personagem de seu cinema (esse um jogo mais equilibrado nos Contos Morais, agora questão de linhagem nas Comédias e Provérbios).

    Mas a diferença de Rohmer em sua época com o Beineix de então já era evidente, que dirá para nosso contemporâneo 2015: se existe a ‘beleza’ em um título seu, ela se dará no filme de alguma forma, pois Rohmer nunca foi de falsas impressões mascarando intenções. Conseguimos então entrever, com auxílio de conversas e desdobramentos dessas, uma premissa de futuro no trem, ao final desse filme. São as notas de esperanças que extrapolam a lógica de três atos da filme-publicidade, dos histrionismos de superfície de um Beineix. Existe um “novo” filme além do fim, a certeza de que os personagens seguirão vivendo após o término daqueles créditos.

    É desse casamento consigo e os seus retratados que nasceram aquelas noites de lua cheia com Pascale Ogier, que era sua nova Dombasle logo após a abertura das praias de Pauline, transportada então para uma Paris noturna e sonorizada por sintetizadores (quando não podem conversar, eles dançam em Rohmer). Talvez seu pesar no filme foi justamente estar cerrada por quartos, apartamentos, casas, paredes, festas. Talvez tivesse nascido justamente para o vento dos balneários que acometem Delphine ou Dombasle. A verdade é que era esplendor demais em Rohmer; tanto que o lado chato de Ogier nesse filme apequena-se diante do quanto ela transforma sua própria mesquinhez em um catalisador para outras, de diferentes graus por meio de Fabrice Lucchini e Tchéky Karyo (e se falamos tanto das chatas rohmerianos, ressalto o quanto são terríveis os chatos rohmerianos).

    Se Pascale não resistiu tanto em cinema quanto em vida, fica aqui uma nota de pena por não a termos visto voar nos horizontes abertos que formam todo O Raio Verde que vimos essa noite no Cineclube. Depois de Beatrice, Arielle, Pascale, temos Marie. Só que Marie trás consigo todas as outras, sem deixar de trazer a si mesma. Ela não demonstra as coisas, ela mostra para nós. E é da grande diferença entre o que é demonstrativo, essa matéria de superfície cada vez mais presente em nossos dias, e o que nasce espontaneamente, essa qualidade rara ao entender o recuo necessário para confrontar-se o Mundo, que o filme expõe.

    (...)

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  2. (...)

    Se a pulsão documental em Rohmer é a sua ficção, tal pulsão redobra-se em Raio Verde, e logo mais para frente em Conto de Outono, por uma simples razão: são “documentos” do método rohmeriano. Jamais confundir como nasce o acaso que existe em seus filmes. Rohmer não sai a esmo, com equipe a vagar em “improviso”. Tampouco fia-se no “profissionalismo” do cinema, como filme prelimitado antes da realização. É importante lembrar que Rohmer já nos disse não acreditar no acaso, no puro acaso das coisas. Mas como é possível para ele chegar em tal profundidade orgânica das relações humanas, do pacto com a realidade, de forma tão fluída e natural? Oras, por Cinema. Não por qualquer golpe ou artificio de roteiro, por sensos baratos de apreensão, por significação simplista, mas sim através de uma câmera (aqui, na “amadora” bitola 16mm). Cinema é uma arquitetura, e até para o acaso nele constrói-se uma. E Cinema é aquilo que vimos naquelas pradarias, montanhas, e praias por onde Delphine caminha sem saber o que esperar, onde chora sem saber o que lamentar. Pois antes de tudo, para que a borboleta entre em quadro (Biette copyrights), é necessário que a câmera se direcione para algo.

    Uma vez um amigo me disse: “Como Hawks, Rohmer está lá!”. E o “método” acima de tudo é esse, sentar e esperar sim, mas sempre lembrar: a Providência rohmeriana não cai de graça no colo. Seja para ele próprio, seja para o espectador. É uma questão de tempo, de duração (Daney copyrights). Com uma atenção matemática, com um rigor de caçador, arquiteta-se nos lugares um espaço por onde o acaso influíra no seu próprio decurso. Natural como o é em vida, ou seja, como deveria ser nos filmes.

    O que me fascina nesse sentido, é que se fosse um “roteiro filmado” ao invés de um filme (essa distinção existe), tudo nos seria dado de antemão. Tudo já seria revelado, tudo seria despertado, ou melhor, seria “espertado” no filme (o cinema em 2015 é a alcova da ignorância travestida de idílio dos espertos). O que me fascina é que de tal modo descubro esse filme no exato mesmo tempo que Marie o descobre também. Surpreendo-me não com ela, mas como ela. Nem antes ou depois, no momento do ato (o final de Conto de Inverno). Isso não se “escreve”, isso não se encena. A clarividência de Rohmer é essa de saber antever aquilo que nem o próprio esperava. O plano do gato andando pelo teto. São coisas do durante, quando se faz um filme. De um dia em particular, dentre os muitos outros, que formaram aquelas cartelas temporais nesse diário filmado de Delphine.

    Quando eu vejo um zoom em Rohmer, tenho a impressão de acompanhar o nascimento da Verdade daquele momento. Não é algo pregresso, é algo do presente, algo no presente... Não está ali para evidenciar aquilo, está ali porque aquilo é uma evidência (novamente, olá Hawks, e bem-vindo Rossellini).

    Creio que essas distinções entre evidência e signo, entre filme e roteiro, geram uma confusão cada vez maior, algo que o debate de hoje me ajudou a perceber ser cada vez mais necessário separar e distinguir. O que mais me surpreende é como pode-se confundir assim, em um filme de didática tão clara. De modo que não há como atravessá-lo sem ignorar sua proposta base: essa de ensinar como olhar a vida que se foi e a vida que nasce diante de nós. Pode-se até querer não entender, permanecer com as certezas fáceis, com uma visão supostamente maior do que a do próprio filme, mas custo a crer sermos capazes de ignorar sensivelmente tal dimensão; que é quando finalmente volto ao prólogo desse relato.

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  3. (...)

    Marie Rivière é nesse começo pura superfície, de uma existência completamente superficial. Suas férias são a fuga dessa banalidade que está imersa. Lembrando desse começo, espanto-me como logo desgostarei tanto dessa personagem. Ela aparenta ser bonita, possui certa graciosidade natural. Memoráveis são aqueles planos dela (e da grande Lisa Heredia) banhadas na luz do sol ao lado da perfeição das estátuas.

    Assim, por alguns minutos, enquanto ainda não a ouvimos nada falar, nada dizer sobre si ou sobre o que acredita, em geral na vida ou na sua própria existência. Enquanto apenas existe, ao ler um livro, me pareceu uma premissa interessante. É um contraste jubilatório (essa palavra que Bénard amou tanto ao filme). Seríamos capazes de amar tal mulher, mas seríamos apenas superficialmente.

    Tenho as suspeitas que aquela breve cena da sua volta em Paris, onde um estranhíssimo rapaz a segue pelas ruas, está lá justamente para evidenciar nossa posição de espectador nos princípios do filme. Se um dia olhamos para ela como aquele rapaz de estranha regata, como agora é distinta a virada de nossa impressão sobre ela em meados do filme. Certamente, o completo oposto, e prova de que estávamos errados no começo. De que aquele olhar do rapaz não é o que Delphine merece em vida, e muito menos o que Rohmer deseja impresso no filme.

    Como Ogier, Rohmer desconstrói a beleza aparente e cria aquela que nasce pela falta de uma essencial. Ou talvez de uma natural, para sermos precisos. Rohmer desnuda cada vez mais Delphine. Rohmer dá luz a outra Delphine, a uma outra beleza.

    Penso em uma certa história para o filme, um tanto formular:

    Ela era assim, e assim você nunca a compreenderia, como ninguém antes o conseguiu. Se fosse amada, seria pelos motivos errados, e nada algures no futuro existiria. Aprende-se a desgostá-la profundamente, e ela te incomodará tanto por um motivo: naquilo que se desvelará de mais odioso nela haverá um pouco de si. Como qualquer ser humano, a primeira reação é a rejeição. Verdade frontal demasiado intensa.

    E depois do primeiro sobressalto, depois de vermos que ela pode ser tão terrível quanto nós, entendemos todo o caráter humano desse filme. Quando voltamos para aquele final, já não é mais a história de um personagem ou a imersão de uma ficção.

    (...)

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  4. (...)

    Como é que Bénard disse certa vez sobre um filme? “Se me disserem que é vida, digo que não é. Se me disserem que é cinema, digo que não é.

    Não precisaríamos nem ver o raio verde. Basta saber que Delphine o viu, e isso nos valeria o filme. Acreditamos no rosto dela.

    Se lembram como era o rosto dela no princípio? Se antes ela parecia ser bela, agora ela é bela. Apenas é, como o raio verde o é também. Nós aprendemos a vê-la, como Rohmer aprendeu a filmá-la.

    Filmar, tenha-se sempre isso em mente. É o que me lembro de Rossellini ter feito ao final de Stromboli com Ingrid Bergman. Terra de Deus. Se hoje alguns ainda insistem em esquecer, juro que não me esqueço assim como esses filmes não foram capazes de esquecer. Terra de milagres, Cinema...

    Matheus Kerniski

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