sábado, 9 de maio de 2015

Ossos

  (Portugal, 1997, Pedro Costa)

Em Casa de lava (1994), o anterior filme de Pedro Costa, ouvia-se da boca de um cabo-verdiano em trânsito para Portugal uma frase aparentemente anódina, mas que adquiria, de súbito, proporções quase trágicas: “Quero morrer em Sacavém”. A frase, dita com o tom de quem fala de um sonho, era arrepiante, mas era preciso estar cá, deste lado, para o perceber – por sabermos que a única coisa que podíamos oferecer a quem sonhava assim era, bem pelo contrário, um pesadelo. Ossos (1997), filme em que o Cabo Verde de Casa de lava faz raccord com o miserável bairro das Fontainhas, nos arrabaldes de Lisboa, é o filme desse pesadelo.

“Pesadelo”. A palavra é curta para descrever todo o alcance de Ossos, mas suficiente para o arrancar, desde já, ao fardo representado por toda a gama de “obrigações sociológicas” que alguns nele viram ou gostariam de ter visto. É importante, para evitar mal-entendidos, que isto se esclareça: Ossos não é um “documentário”, mas, antes, uma espécie de fábula, com não poucas alusões mitológicas variadas, sobre um mundo fechado, mas sem centro, com tendência a expandir-se para lá das suas fronteiras, num movimento que dilui e consome tudo e todos à sua passagem. Ele é como uma doença, de alma e de corpo, que avança insidiosamente até que percebemos que é tarde demais e que ela nos rodeia. Em Ossos não há o conforto da distância nem é visível a linha que estabelece a separação entre “nós” e “eles”: quando vemos, através das mulheres há dias, a arrumação fria, higienizada e desalmada das “nossas” casas, percebemos, com um arrepio, que a tangente se dissolveu e que é tudo o mesmo. Muito mais do que uma estocada na má consciência burguesa, Ossos é um filme que
transforma o mundo numa parada de “zombies”, de “mortos em licença” – e o “bairro” é, aqui, todo o mundo. Como afirmou Pedro Costa em entrevista à revista francesa Les Inrockuptibles, “é como na Idade Média, tudo se torna uma espécie de território que não começa pelo centro, mas pelo exterior, e começa a avançar por contágio. No filme, há qualquer coisa de muito doente que começa a invadir tudo (...); não há muita diferença entre os negros do bairro e os brancos da média burguesia: é a mesma coisa, os mesmos gostos, as mesmas ambições”. Ossos é o filme que obscurece o mundo para iluminar essa equivalência.

 É por isso que, ao contrário de Casa de lava, em que existia a personagem de Inês de Medeiros para nos guiar, em Ossos estamos, desde o primeiro plano, absolutamente sós e absolutamente dentro – ao contrário daquele filme, a identificação é aqui um ato forçado e incômodo. Uma vez “dentro”, não se sai, transporta-se o bairro (e o “bairro” continua aqui a ser metáfora de muita coisa) no corpo. Vê-se isso muito bem naquele espantoso travelling em que Pedro Costa desafia todos os critérios formais que escolheu para o filme e que mostra a caminhada de Nuno Vaz ao longo das intermináveis fachadas do bairro: como se toda a duração do plano mais não fizesse do que pôr em evidência que, quanto mais se anda, mais “dentro” se está. Não há fuga possível, o bairro estende-se como se fosse móvel e, o que é mais grave, como se operasse um poderoso efeito de sucção.

De resto, “sugada” é a personagem da enfermeira interpretada por Isabel Ruth: desde o princípio uma personagem associada à “doença”, acabará por ser totalmente conquistada por ela e para ela. Como se se tratasse de uma verdadeira dissolução, no último plano em que aparece já não lhe vemos o corpo, ouvimos-lhe apenas a voz; e numa confirmação da sua entrega, essa derradeira cena da personagem deixa em elipse a sua cedência ao flirt movido pelo marido de Clotilde.
Se há uma personagem que faz o movimento inverso é a do bebê, que anda de mãos em mãos até ao momento em que é oferecido à personagem de Inês de Medeiros. É possível resumir a narrativa de Ossos (ou pelo menos parte dela) a essa permanente circulação do bebê, entre aqueles que o querem matar (a própria mãe) e os que o querem salvar (o pai). No entanto, esse bebê é aqui sobretudo um símbolo, espécie de “semente do mal” (é por isso que a mãe o quer matar) cuja vida representa apenas a consumação ou a confirmação do avanço da “doença” – quando Inês de Medeiros, personagem estranha ao bairro, aceita ficar com a criança, percebemos que essa doença conquistou mais algum terreno.

Olhar desesperado sobre a existência humana (ou já pós-humana; foi o próprio Pedro Costa quem falou das suas personagens e dos seus atores como “mutantes”), que transforma homens e mulheres em seres subterrâneos, que por vezes fazem lembrar o “povo das trevas” mostrado pela Múmia do egípcio Shadi Abd As Salam, Ossos constrói, para isso, uma prodigiosa estrutura formal. Duas ou três coisas fundamentais passam exclusivamente, ou quase, por ela: a ausência de profundidade, como se o campo de visão estivesse permanentemente cortado e como se isso fosse uma maneira de fazer sentir a sombra da morte a pairar; a construção altamente elíptica, não só da narrativa, mas também de toda a planificação, como se a comunicação entre ações e planos fosse algo de doloroso e regido por regras secretas e clandestinas; e, finalmente, o som, um fantástico trabalho de som, verdadeiramente uma mise-en-scène à parte, que tanto cola à imagem como a abandona, que tanto a acaricia como a envolve para a engolir – o som, em Ossos, é a morte a trabalhar nos interstícios.


Luis Miguel Oliveira
(Publicado originalmente por ocasião do evento Cinema - Uma escolha de Pedro Costa e Rui Chafes, na Fundação Serralves, Porto, em janeiro de 2006. Retirado do catálogo “O cinema de Pedro Costa”)

Um comentário:

  1. bêbados Yeats e ossadas
    nada importa enquanto os desejos morrem vivida é a música na última vez de um homem eternidade ficando pequena cercada perfurada
    palavras preparadas para morrer
    nunca de todo seu corpo por amor mulheres nuca dão beijo por beijo por um sonho breve deleite incerto cego tolo amor nada senão pó de ossos reunidos
    II se osso memoria osso corroída as entranhas não me faz falta chorar nenhuma lagrima pela morte do que um dia foi minha estupidez tua intolerância minha pele teu corpo que divide comigo não sei se por prazer ou obrigação cínica fluidos densidades pesos sem medidas defeitos todos no mesmo canto escuro se lá fora faz sol bom tempo belo para esquecer fossilizadas horas cinzas queimadas e crocantes forjando orgasmos palavra já não lembro aquelas jamais reescritas esquecer o ritmo se possível entre o eu e o ninguém e o todo bruto

    J. de Canter

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