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Filme narra a aventura entre dois brasis
desiguais. foi proibido pela ditadura e pode ser visto de graça em Belém.
Miguel Haoni
Especial para o jornal Amazônia
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"Iracema -
Uma transa amazônica", filme de 1974 (censurado no Brasil até 1981),
dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, será exibido durante esta semana
no Cine Olympia, às 18h30, com entrada franca. Um encontro peculiar.
De um lado temos a
opulência da "Belém do já-teve", símbolo do falso fausto da Belle
Époque, representação máxima dos rituais burgueses, dos tapetes vermelhos e
daquilo que historicamente chamam de "vestir-se para ir ao cinema".
Do outro, um retrato cruel e sincero de um Brasil (o nosso) marcado pela miséria,
pela luta diária por comida e pelas estradas do abandono.
"Iracema..."
é uma obra revolucionária que precisa ser revisitada sempre, pois além de
guardar imagens importantes do estado do Pará (território afirmado pela
segurança nacional, mas desprezado pelo desenvolvimentismo da ditadura
militar), é uma aula de método cinematográfico.
O filme narra o
encontro de dois brasis carregados na carne dos personagens principais. Paulo
César Pereio, grande personalidade do cinema brasileiro, é Tião Brasil-Grande,
um carreteiro gaúcho que tenta a sorte nas estradas do Norte transportando
madeira e pregando os chavões ufanistas dos anos 70. "Ninguém segura esse
país" diz ele enquanto passeia pela paisagem de guerra do
subdesenvolvimento. O personagem encontra num prostíbulo em Belém a maravilhosa
Iracema, interpretada num desempenho hiperrealista por Edna de Cássia, a
mulher-bebê cabocla, que representa o sonho logrado de uma terra prostituída.
Depois do encontro, a aventura.
A trajetória dos
personagens pelas estradas paraenses é só o pivô de uma aventura muito maior. A
equipe de filmagem que topou este desafio, capitaneados pelos cineastas
Bodanzky & Senna tinha uma ideia muito particular de realização: o filme
seria o amálgama absoluto entre o documentário e a ficção.
Um documentário-ficção revolucionário,
produzido em 1974
O filme recupera o
cine-olho do cineasta russo Dziga Vertov ("O homem com a câmera"). Um
dos mestres pioneiros do documentário, Vertov tinha como princípio a tomada de
assalto da realidade, sem efeitos, para a posterior recriação na mesa de
montagem. A realidade aqui flagrada é a de um povo abandonado pelo poder
público, país que o cineasta Glauber Rocha ("Deus e o Diabo na Terra do
Sol") chamava de Brasil pré-histórico em oposição ao Brasil moderno de Rio
e São Paulo.
"Iracema..."
recria o método da entrevista confrontando personagens semi-fictícios com a
realidade dos trabalhadores paraenses, antecipando a tendência do
falso-documentarismo norte-americano de Michael Moore ("Fahrenheit 11 de
Setembro") ou Sacha Baron Cohen ("Borat - O segundo melhor repórter
do glorioso país Cazaquistão viaja à América"). Aqui, entretanto a verdade
domina a tela e o efeito câmera, recorrente nos documentários, que modifica o
comportamento dos entrevistados, acentua ainda mais o sentido do improviso e da
urgência na captação das imagens. Os passantes que olham diretamente para a
câmera atribuindo à equipe de filmagem uma corporeidade dramática são sempre
bem vindos.
O filme, que teve uma
co-produção alemã, trouxe as primeiras imagens das queimadas da floresta
amazônica a correr o mundo e foi fundamental para o fortalecimento do movimento
ambientalista mundial. Também é notável o registro de vários fenômenos como o
Círio de Nossa Senhora de Nazaré e o transporte do açaí na embarcação a motor.
Não é, entretanto um
filme de imagens belas, mas sim de imagens fortes, que provocou e ainda provoca
reações de horror aos obedientes asseclas da ditadura do "plasticamente
correto". "Iracema..." é uma anti-Amelie Poulain. Sua dor é real
e representa no corpo as feridas de uma região.
As imagens finais são
premonitórias: a ficção do "Brasil Grande" abandona Iracema à própria
realidade, no meio da estrada, rindo prostituída no País dos Banguelas. Imagino
que os palavrões ecoarão nas paredes quase seculares do Cine Olympia com muito
mais raiva.
“Iracema, a transa amazônica”:
ResponderExcluirLente dura, estreita, germânica.
Um comentário dissidente.
Oi amigos do Cine Clube SESI,
No bate-papo depois da apresentação do filme “Iracema – uma transa amazônica” no dia 20 de fevereiro eu foi o único que não gostou do filme, e até criticou-o veemente.
Eu falei primeiro que não gostei do filme porque a protagonista nem passou por um desen-volvimento mínimo, mas foi mercadoria do inicio ao fim. Segundo, mencionei que Iracema me lembrou do filme Cidade de Deus que foi elogiado na Alemanha mas no meu ver dava aos alemães uma impressão bem distorcida do Brasil. E eu fiz a pergunta: “Vocês acham que esses filmes mostram o Brasil como é de verdade?”
A reação dos participantes foi mais ou menos: “Mas sim, existe tanta exploração no Brasil. Sim, a pobreza, a miséria, é assim mesmo ...”
Porque eu, sendo imigrante alemão, não falo português fluentemente, não conseguia expri-mir por que minha visão é diferente. Porém, acho que vocês brasileiras e brasileiros também não conseguiam colocar-se no ponto de vista de um alemão que assistiu esse filme, seja em 1974 ou hoje. Por favor, imaginem: O alemão normal já nas aulas de geografia aprendeu algo sobre o Brasil: Que tem muita floresta, tem o maior rio do mundo, e que lá não se fala espanhol más português. Fora da escola, o que o alemão aprende do Brasil é que tem samba e carnaval e milhares de Neymars da praia sonhando com ganhar milhões nos clubes da Europa. E com esse conhecimento básico do Brasil, os Alemães vão assistir “Iracema” e “Cidade de Deus”. Qual impressão do povo brasileiro vai ficar na mente deles? Povo consis-tindo de prostitutas, caipiras, malandros, explorando um ao outro, como em Iracema? Povo dominado por bandidos negros de crueldade inhumana, como em Cidade de Deus?
Será que eu menosprezo que “what this movie denounces is the beginning of the announced ecological disaster through the uncontrolled burning of the forest and illegal extraction of wood; slave work; infantile prostitution; corruption” (www.imdb.com/title/tt0126968/) ?
Sendo ecologista dedicado já desde os anos 70, eu sim percebi que o filme Iracema trans-mitiu já no ano 1974 imagens da Amazônia queimando. Admito que a cena onde na cerca do gado (dos escravos animais) os escravos humanos da fazenda ficam sentados esperando emprego mostra de modo genial o forte laço entre agropecuária e escravidão existindo até hoje. Porém, justamente no dia da apresentação de Iracema, eu li num site alemão que a carne esta ficando mais barato agora. Por que? A industria de carne alemã está usando mais e mais soja barata transgênica para engordar os animais. Soja de onde? E quem foi o culpado para a floresta queimante já no ano 1974, senão o trafego de madeira/carne/soja para Europa e os EU? Claro que no ano 1974 poucos fizeram esse meat connection. Porém, justamente nesse ano 1974 o meu professor de sociologia em Munique lecionou sobre a famosa teoria da dependência do sociólogo F.H. Cardoso que explica a exploração da peri-feria pelos centros econômicos globais. É que o filme incentiva a ver as estruturas de explo-ração internacional? É que a calcinha Coca-Cola da protagonista já desvela o bastante que o trafego de cocaína com toda a criminalidade concomitante é fomentado pelos centros no “primeiro mundo”?
ResponderExcluirE a exploração sexual de mulheres e menores? Lembram que antes da vitoria de Fidel Cas-tro a ilha dele foi chamada o bordel dos Estados Unidos? E hoje? No ano 2005, eu fiz o co-nhecimento perdível de um grupo de jovens machos vindo de uma aldeia caipira na monta-nha da Suiça, em São Luis do Maranhão. Moços de baixa escolaridade, mas ricos o bastante para comprar passagem, voar para o Brasil e gastando duas semanas entre praia, cerveja e mulher barata, submissa ela literalmente aos donos do centro mundial do dinheiro (a Suiça). Uma amiga minha, supervisora de escola publica em São Paulo, com o marido (negro também) adotou o filho de prostituta negra com turista suíço: Exemplo vivo da dependência e exploração, mas também da solidariedade, hospitalidade e humanidade da gente humilde brasileira, dessas realidades bem escondidas dos olhos alemães por filmes “realistas” como Iracema e Cidade de Deus; realidades que fortemente se destacam da xenofobia, do racis-mo e antisemitismo da Alemanha.
No bate-papo, eu falei que, do mesmo jeito “realista” tipo Iracema, alguém pudesse produzir um filme que mostraria todos os lados feios da Alemanha, partindo por exemplo da historia dessa moça bonita Beate Zschäpe (talvez “Beate, a amazona germânica”?) que até 2007 apoiou a dois outros neonazistas executando uma policial e nove imigrantes de tiros na ca-beza. Caso excepcional, certo. Porém, a empresa Telecom da Alemanha (antigamente es-tadual e monopólica) que oferece cada dia um jornal online, não mais oferece espaço para comentários quando a noticia tem de ver com imigrantes, judeus, africanos, visto que geral-mente os comentários a esses assuntos acabam sendo insultantes, machistas, racistas e inhumanos num degrau intolerável. Até quando o sobrevivente da revolta no gueto de Var-sóvia Israel Gutman morreu de 90 anos, a Telecom tinha que fechar e apagar os comentari-os depois de 15 minutos. Justamente na tarde antes do filme Iracema, eu denunciei á Tele-com o comentário de um alemão que, referindo-se a um artigo sobre a ex-ministra da união cristã democrata Annette Schavan (58 anos) escreveu de ortografia pobre: “Essa vaca! Jo-guem a avó fora do trem!”
ResponderExcluirTom normal. De onde vem tanta raiva, tanto ódio? No meu ver, esse fenômeno que nunca encontrei fora da Alemanha (aliás, todos os racistas e antissemitas que encontrei no Brasil orgulha-rem-se das suas raízes alemãs) é produto da educação dura alemã, dessa cultura tão disciplinada. No inicio do filme, alguém menciona a Volkswagen (fundada pelo governo Hitler) investindo no Brasil. Também o caminhão do Tião, desse gaúcho branco e dinâmico (e provávelmente descendente de alemão), é alemão: Mercedes-Benz, produto de qualidade. As duas empresas, junto com a cena na frente do trator gigante Huber Warco (nome ale-mão, filmeeem!) figuram como contraste ao caos e á desordem dos brasileiros, potentes eles só transando.
Porém, a qualidade producida por trabalhadores disciplinados alemães tem um lado feio.
Já o grande antisemita Martin Luther (que mesmo, justamente como o seu admirador Hitler, foi espancado pelo pai dele quase até a morte), escreveu que “apenas pais sem amor ... não dão porrada forte ao seu lixo de sujeira [Drecksack] de filho“ e com essa bondade irrespon-sável tais pais “bem merecem o inferno”. Em 1970, o psicólogo Leopold Bellak solicitou es-tudantes a observar playgrounds em Kopenhagen, Frankfurt e Milano. Enquanto pais dina-marqueses e italianos não cometeram atos agressivos contra os filhos deles, os observado-res contaram 73 cometidos por pais alemães. As crianças alemães cometeram 258 atos agressivos contra outras crianças, em contraste com 48 por crianças italianas e 20 por di-namarquesas. “Parece que os alemães maltratam os filhos deles mais frequentemente ... e os filhos dão o troco a outro menino”, Bellak concluiu na sua pesquisa que chamou “Porque estou com medo dos alemães”. No ano 1984, eu ouvi um jovem trabalhador de vinte anos falando das condições na empresa dele: “É droga, hoje você nem pode dar bofetada a um aprendiz!” Até hoje, dois dos meus ex-alunos ficam com trauma grave psicológico por causa do tratamento duro que sofreram por seus donos na aprendizagem. Na escola publica alemã, as crianças são submetidas a uma seleção e separação decisiva já na quarta série. “Um tipo de escola prepara você para virar medico, o segundo para virar técnico e o terceiro para fazer kebap e limpar sanitário”: Assim o autor americano Tuvia Tenenbom descreveu em 2012 esse sistema onde segundo pesquisas oficiais o filho de trabalhador ou imigrante tem chance 500% pior de chegar á universidade do que o filho de classe media com inteligência igual. “Ver este sistema num país de primeiro mundo era e ainda é um choque muito grande”, comentou a mãe Curitibana Carolina Behrla no livro “Minha vida na Alemanha” (2011). Em vão o comissário da ONU para direitos humanos Vernor Muñoz (Costa Rica), reivindicou mudanças no sistema enquanto mães e pais Hamburgueses, declarando que “Nós não que-remos que os nossos filhos terem que aprender junto com filhos de migrantes por tempo mais longe que necessário” conseguiram impedindo (de referendum) em 2010 o prolonga-mento da escola comum de quatro a seis anos. A separação na quarta se faz usando testes inexoráveis, deixando as crianças com medo permanente. “Uma loucura absoluta” – “Um horror diário” – “Um crime contra as crianças”: Esses três comentários eu ouvi nos anos 2004-2007 de três diretores de primaria, dois dos quais continuaram cumprindo com obedi-ência bem alemã o papel deles no funcionamento desse sistema. A raiva causada por essa injustiça e esse tratamento duro já na infância fica na mente dos alemães. “O alemão é duro para consigo mesmo e para com os outros. Porém, dureza extrema sem autoridade interior resulta em amargura, medo e desejo de vingança”, o psicólogo Erik Erikson explicou em Childhood and Society (1950).
ResponderExcluirUm papel favorito desse povo disciplinado que também provém da escola alemã é o papel do Oberlehrer (professor superior) gostando de reprovar e corrigir todos os estúpidos, sobre-tudo de buzina no transito. Iracema no meu ver é um exemplo desse dom alemão de desta-car os erros dos outros e esconder os próprios. Por exemplo, o antissemitismo fica forte na Alemanha porque a raíz basica do holocausto, i.e. o anti-Judaismo milenar cristão, nunca foi abordado pela mídia e nunca um filme alemão tratou desse tabu. A ligação ainda forte entre igreja e estado, baseada no concordato de julho 1933 entre Hitler e o Vaticano (que é um tabu mesmo), junto com uma atitude bem comum de não-querer-saber proíbe esclarecimen-to. Um filme que abordar o complexo “Cristianismo-Nazismo” simplesmente não iria receber verba publica como recebeu o filme Iracema que, olha que ousadia na terra alheia, abordou a trindade pouco santa consistindo da virgem-mãe santa no céu, a mãe natureza explorada e a filha prostituta na terra. Aliás, o produtor de Iracema foi a ZDF, a “Segunda TV Alemã” fundada nos anos 60 com o proposto de instalar um contrapeso á primeira emissora ARD que, tendo sido fundada na fase da “de-nazificação” sob contrôle americana, foi “esquerdista” demais para os conservadores. Justamente anteontem, no dia 25 de março de 2014, a Suprema Corte Alemã por fim restringiu a influência excessiva de estado e partidos no ZDF!
ResponderExcluirResumo: Não é por acaso que o filme Iracema, co-produção alemã-brasileira, ganhou o estimado Premio Adolf Grimme. Aos alemães, esse filme, junto com a crítica social correta, transmite uma imagem do Brasil que concorda com a visão conveniente da supremacia europea e germânica: O Brasil é retratado como pais selvagem de homem selvagem e mulher tipo lata coca-cola, lembrando o mercenário Hans Staden que no século 16, voltado para Alemanha, relatou aos compatriotas dele sua a-ventura com os antropófagos de Ubatuba. O filme do século 20, de novo, acusa as vitimas e adula os exploradores enquanto só muito tímido (lembrem o coronel na procissão da virgem santa) aborda ás causas sistêmicas da miséria. A letargia com que todas as figuras do filme adaptam-se ao sistema reflete a obe-diência fatal do povo disciplinado alemão e deixa nem um raio de luz no fim to túnel.
Esse fim desesperador do filme difere muito, por exemplo, do Teatro da Arena do Augusto Boal que sempre convidou os espectadores a reconstruírem a realidade e encenarem o conflito de modo alternativo, com o fim de promover mudança e dar lugar á esperança...
ResponderExcluirDr. Konrad Yona Riggenmann, Curitiba, 27 de março 2014 (konrig@t-online.de)