1992
O Van
Gogh de Pialat não
segue a maior parte das regras tradicionalmente usadas em filmes de ficção
sobre alguma personalidade famosa: não dramatiza os momentos-chave da vida
dele, não mostra suas pinturas prontas (!), não trata o personagem principal
como uma espécie de herói (ele é um homem considerado ridículo pelos valores
dominantes da sociedade), tampouco faz questão de exaltar o aspecto genial de
seu trabalho. Portanto, longe da oficialidade insípida de uma mera
“reconstituição biográfica sobre um ícone respeitável”, Van
Gogh é um amontoado
de fragmentos constituídos por momentos vividos por pessoas comuns (logo,
pessoas com muitas debilidades e fraquezas; pessoas com disposição a praticarem
tanto o Bem quanto o Mal. Pessoas de carne e osso, enfim).
O
sentimento dos espectadores tende a ser algo próximo a de uma frustração: por Van
Gogh ser um ícone
cultural hoje reconhecido como “nobre” ou “genial”, é inevitável que esperemos
do filme indícios dessa nobreza ou dessa genialidade. Estas, não apenas estão
completamente ausentes, como também a construção do personagem em nenhum
momento faz questão de evocar no espectador alguma simpatia por ele. Fatos
biográficos notórios, como a orelha auto-decepada, a convivência sexual com
Marguerite Gachet, a rivalidade com o irmão Theo, tudo parece ter a mesma (des)
importância. Assim como na vida fora do cinema, nada é excepcional (ou,
tudo o é): as coisas passam sem alarde, principalmente aquelas que são
essenciais. Nunca percebemos as coisas essenciais no exato momento em que elas
acontecem.
Essa
não-representação do ícone Van Gogh tal qual o conhecemos não é pouca coisa,
visto que o filme é obra do final do século XX, época da consolidação da
vitória da sociedade do espetáculo, sociedade essa na qual as imagens já são em
sua maioria imagens reprocessadas, ou seja, imagens criadas a partir de outras
imagens. A título de exemplo, porém evitando maiores comparações, o Amadeus de Milos Forman é um filme baseado no
livro de Peter Schafer, que por sua vez é um livro baseado em documentos e outros
objetos. O que Pialat tenta fazer em Van Gogh é eliminar essas intermediações.
Permanecendo o mais distante possível das imagens clichês, Pialat as coloca em
crise simplesmente por ignorá-las. Ele tenta ir direto ao ponto, ser muito
objetivo e nada subjetivo. Prioriza as interações mais quotidianas entre os
personagens, sem alarde, encenando cenas que estão muito próximas da vida que
conhecemos, aquela que esconde os sentimentos e sentidos mais profundos atrás
das aparências mais banais e opacas possíveis.
Percebe-se
que Van Gogh era um homem como os outros, ou até mesmo um homem considerado
pior em relação aos outros. Alguém considerado inútil para a sociedade vigente.
Tido por louco, estranho. Fracassou em tudo. E, apesar da genialidade em
pintar, apesar desse legado monstruoso que é a sua arte, o cinema não pode
reparar a existência miserável (materialmente e humanamente falando) que ele
teve; o cinema é insuficiente diante da vida vivida de forma direta e que escoa
banalmente e discretamente no dia-a-dia. Humildade exemplar do cineasta, que
realizou com muita dificuldade (três anos de filmagem, falência da produtora de
Daniel Toscan, troca de quase toda a equipe durante o percurso) um filme que é
um verdadeiro milagre.
Fernando Watanabe
(texto original: http://www.revistainterludio.com.br/?p=3459 )
(texto original: http://www.revistainterludio.com.br/?p=3459 )
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