segunda-feira, 24 de março de 2014

Van Gogh


1992
O Van Gogh de Pialat não segue a maior parte das regras tradicionalmente usadas em filmes de ficção sobre alguma personalidade famosa: não dramatiza os momentos-chave da vida dele, não mostra suas pinturas prontas (!), não trata o personagem principal como uma espécie de herói (ele é um homem considerado ridículo pelos valores dominantes da sociedade), tampouco faz questão de exaltar o aspecto genial de seu trabalho. Portanto, longe da oficialidade insípida de uma mera “reconstituição biográfica sobre um ícone respeitável”, Van Gogh é um amontoado de fragmentos constituídos por momentos vividos por pessoas comuns (logo, pessoas com muitas debilidades e fraquezas; pessoas com disposição a praticarem tanto o Bem quanto o Mal. Pessoas de carne e osso, enfim).
O sentimento dos espectadores tende a ser algo próximo a de uma frustração: por Van Gogh ser um ícone cultural hoje reconhecido como “nobre” ou “genial”, é inevitável que esperemos do filme indícios dessa nobreza ou dessa genialidade. Estas, não apenas estão completamente ausentes, como também a construção do personagem em nenhum momento faz questão de evocar no espectador alguma simpatia por ele. Fatos biográficos notórios, como a orelha auto-decepada, a convivência sexual com Marguerite Gachet, a rivalidade com o irmão Theo, tudo parece ter a mesma (des) importância.  Assim como na vida fora do cinema, nada é excepcional (ou, tudo o é): as coisas passam sem alarde, principalmente aquelas que são essenciais. Nunca percebemos as coisas essenciais no exato momento em que elas acontecem.
Essa não-representação do ícone Van Gogh tal qual o conhecemos não é pouca coisa, visto que o filme é obra do final do século XX, época da consolidação da vitória da sociedade do espetáculo, sociedade essa na qual as imagens já são em sua maioria imagens reprocessadas, ou seja, imagens criadas a partir de outras imagens. A título de exemplo, porém evitando maiores comparações, o Amadeus de Milos Forman é um filme baseado no livro de Peter Schafer, que por sua vez é um livro baseado em documentos e outros objetos. O que Pialat tenta fazer em Van Gogh é eliminar essas intermediações. Permanecendo o mais distante possível das imagens clichês, Pialat as coloca em crise simplesmente por ignorá-las. Ele tenta ir direto ao ponto, ser muito objetivo e nada subjetivo. Prioriza as interações mais quotidianas entre os personagens, sem alarde, encenando cenas que estão muito próximas da vida que conhecemos, aquela que esconde os sentimentos e sentidos mais profundos atrás das aparências mais banais e opacas possíveis.
Percebe-se que Van Gogh era um homem como os outros, ou até mesmo um homem considerado pior em relação aos outros. Alguém considerado inútil para a sociedade vigente. Tido por louco, estranho. Fracassou em tudo. E, apesar da genialidade em pintar, apesar desse legado monstruoso que é a sua arte, o cinema não pode reparar a existência miserável (materialmente e humanamente falando) que ele teve; o cinema é insuficiente diante da vida vivida de forma direta e que escoa banalmente e discretamente no dia-a-dia. Humildade exemplar do cineasta, que realizou com muita dificuldade (três anos de filmagem, falência da produtora de Daniel Toscan, troca de quase toda a equipe durante o percurso) um filme que é um verdadeiro milagre.

Fernando Watanabe
(texto original: 
http://www.revistainterludio.com.br/?p=3459 )

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