de Tsai Ming-liang, Dong,
1998, Taiwan/França
Perdidas nas selvas
de concreto, as pessoas vagam solitárias em busca de afeto, quase sem saberem.
O fluxo do capital circula muito mais rápido que o dos sentimentos, rarefeitos
e sem espaço de manifestação. Confinadas, elas vivem em espaços desconectados,
em planos estanques de longa duração. Porque o tempo passa devagar quando se
está sozinho.
Poeta da
sentimentalidade no mundo global contemporâneo, Tsai Ming-liang constrói crônicas
fabulares sobre homens comuns, com ecos de um quase existencialismo. Com forte
caráter ilustrativo, seus filmes estruturam metáforas vagas e indefinidas sobre
um determinado estado de coisas emotivo, um certo “mal do século” que teria se
abatido sobre os homens que vivem nas grandes cidades hoje. Muito mais do que
assertivo – embora muitos assim o considerem e por conta disso o taxem de
pessimista –, seu cinema possui tons alegóricos, com o objetivo de, como um
espelho, provocar identificação e reflexão;
emanar uma profunda crença no afeto como única forma de sobrevivência e um
sutil otimismo advindo de uma aposta na transformação. Uma aposta em que o
espectador, pela relação com a intensa figurativização que retrata uma
realidade um tanto calamitosa, aliada a um realismo detalhista, possa pensar em
si e mudar a forma como se comporta no mundo.
O Buraco,
nesse sentido, talvez seja seu filme mais otimista. Produzido como parte do
projeto francês “2000 visto por...” (que entre tantos inclui O Primeiro Dia, de Walter
Salles e Daniela Thomas e O
Livro da Vida, de Hal Hartley), ele vai além na descrição de um cenário
sentimental, compondo momentos de concreta expressão do íntimo – os números
musicais em homenagem ao diretor chinês Grace Chang – e corporificando o “mal”
em uma epidemia – a “Febre de Taiwan”, cujos infectados passam a se comportar
como baratas, rastejando para longe da luz – para terminar de forma muito mais
alentadora.
Lee Kang-sheng,
seu ator fetiche, é um homem que vive num apartamento em um complexo de
habitações populares em Taipei. Certo dia, um bombeiro bate à sua porta para
verificar as origens de um vazamento no apartamento abaixo. O homem
aparentemente conserta o problema, mas deixa um pequeno buraco no chão. Lee, ao
percebê-lo, começa a espiar a moradora de baixo, Yang Kuei-Mei. Imersos numa
situação de caos social – o governo determinou áreas de quarentena e constantes
emissões encorajam os moradores não-infectados a evacuar para uma habitação
temporária até que a disseminação do vírus possa ser contida, ameaçando com
corte de água e não-remoção de lixo aqueles que se recusarem a abandonar seus
lares –, embalado por uma tempestade que não cessa, os dois personagens têm,
naquele buraco, um meio possível de contato humano, um espaço através do qual
se torna possível invadir o ambiente isolado do outro, o plano cinematográfico
daquele vizinho invisível (pois o apartamento que não é o seu reside no espaço
fora da tela). Ao se darem conta da existência um do outro, os dois se apaixonam
progressivamente. Talvez sejam os únicos restantes ali e o clima de iminência
do Fim os atira numa súbita necessidade de reverter a situação em que se
encontram, de total individualismo solitário. Lee, em sua habitual
“inoperância”, passa muito tempo quase inerte, como se pouco ou nada pensasse e
sentisse, enquanto Yang, neuroticamente, concentra todos os esforços para
conter as inúmeras infiltrações que assolam seu apartamento. Com sua construção
um tanto arquetípica, representando “um homem” e “uma mulher” indefinidos, eles
terminam por desenhar alegoricamente a atitude a se tomar na virada do século –
olharmos uns para os outros e nos entregarmos aos sentimentos –, materializando
a vontade de Tsai de provocar qualquer movimento, qualquer impulso de mudança.
O buraco vai aumentando, até que Lee consegue passar uma perna por ele, e
depois outra... E finalmente chega o dia em que ele estende seu braço e resgata
Yang de sua solidão, puxando-a pelo buraco para seu apartamento. Diferente de Vive L’Amour, em que todos os
personagens terminam separados, cada qual com suas dores irremediáveis, e May
(também Yang Kuei-Mei) chora compulsivamente por minutos no banco de uma praça
no plano final, ou mesmo de O
Rio, no qual aparentemente o mal sem nome que ataca cronicamente o pescoço
de Xiao-kang (Lee Kang-sheng) cessa ao final (talvez pelo afeto que recebe
indiretamente do pai, quando este, no escuro da sauna, acidentalmente o
masturba) e ele abre a janela para um novo dia.
Preocupado com
uma verossimilhança de pequenas ações que beira o hiper-realismo (mesmo em O Buraco, a despeito do quê
surrealista que o envolve), Tsai faz de seus personagens seres que, mergulhados
no ambiente que habitam, enfrentam dificuldades processuais com o mundo,
complicações muito cotidianas, que crescem a ponto de os assolarem. São as
goteiras e infiltrações constantes (em O
Rio, O Buraco e Adeus,
Dragon Inn), as estratégias para utilizar o apartamento vazio sem que os
outros que fazem o mesmo descubram (em Vive
L’Amour), a atenção constante para exterminar as baratas que invadem a sala
e os quartos (em O Buraco),
a engenhosidade do saco plástico para urinar sem ter que sair do quarto no
escuro da noite (em Que horas
são aí?)... Como que desoperacionalizados pelo seu entorno não-amigável,
frio e impessoal, poluído e corrompido pelo desenvolvimento tecnológico e
urbanização vertiginosos, estes personagens não conseguem se adequar nem
funcionar apropriadamente, gerando freqüentemente cenas de tom cômico que
lembram Jacques Tati. Há algo que falta, há uma fragmentação que insiste em
isolá-los no espaço e na narrativa. Quando dividem o mesmo espaço, não é ao
mesmo tempo (O Rio e Vive L’Amour) e quando vivem ao
mesmo tempo, não dividem o mesmo espaço (Que horas são aí?, O Buraco e Adeus,
Dragon Inn).
Tal qual os
“modelos” bressonianos, com suas ações desdramatizadas, estes personagens
simplesmente “existem” (sobretudo Lee Kang-sheng), seguindo uma certa “verdade”
dos fatos e ações que experimentam, dentro de um quadro que respeita sua
unidade espaço-temporal. São entidades vivas, à semelhança do resto do planeta,
e sofrem, mais do que tudo, por não poderem assim subsistir de forma
satisfatória, tendo sido todo o seu meio modificado à exaustão. Como plantas,
eles correm o risco de secar. A água abundante (chuvas torrenciais, goteiras,
infiltrações, garrafas d’água, urina, lágrimas), no entanto, de nada adianta.
Precisam do afeto de outro ser humano. Nem que este venha através de uma
câmera...
Tatiana Monassa
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/72/oburaco.htm )
Tatiana Monassa
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/72/oburaco.htm )
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