(Sous le
Soleil de Satan, 1987)
À primeira vista, Sob
o Sol de Satã surpreende
os fãs de Pialat acostumados ao olhar bruto e dilacerado de filmes como Aos
Nossos Amores, Loulou e Passe Ton Bac d’Abord.
O livro de George Bernanos não oferece somente um cenário diferente das ruas e
do universo adolescente que impregna esses filmes. A própria mise
en scène aqui é mais
controlada, mais estudada, de traço fino, a luz e os movimentos de câmera são
suaves. Relativamente fiel ao livro, Pialat deixa que o texto guie os atores.
Ao mesmo tempo, ele arquiteta um mundo cinza, sem vida, um universo que
conspira, onde as tragédias simplesmente acontecem, corriqueiras.
Primeira manifestação de
satã: a câmera faz um discreto giro em 360º passando de Mouchette (Sandrine
Bonnaire) a Cadignam (Alain Artur), que entra pela porta e é morto por um tiro
de espingarda. A morte é completamente inesperada. O movimento de câmera ajuda
a desdramatizar a cena, retirando seu sentido e preservando o choque seco diante
do absurdo – algo aconteceu.
Segunda manifestação:
Mouchette intimida Gallet (Yann Dedet). Ela fala sem parar, confessa seu crime
friamente. Um grito dela encerra a cena – um grito surdo, vazio, a histeria de
um corpo que enxerga por um momento a consciência demoníaca que lhe é externa e
que a possui.
Vê-se logo que o
princípio pialatiano do corpo como entidade deflagradora de intensidades
permanece intocado. O que é Donissan (Gerard Depardieu) senão um corpo
moribundo? Como pároco, ele é incapaz de cumprir o papel social que esperam
dele (“No seminário, era um aluno medíocre. Inteligência, memória, assiduidade,
tudo me faltava”). Donissan é tão somente uma massa, um corpo que vaga em busca
da iluminação divina ou da perdição do inferno.
Se o corpo permanece, o
que muda em Sob o Sol de Satã, então,
é sobretudo a linguagem: sai o documentário, entra a adaptação. No lugar do
furor e da contaminação pelo mundo, Pialat impõe um registro árido, que nos
deixa ver a própria transparência do mal por trás daqueles corpos sem vida e
daquelas paisagens cinzas e despovoadas. Palma de Ouro mais do que merecida.
(texto original: http://www.revistainterludio.com.br/?p=3457)
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