segunda-feira, 17 de março de 2014

Sob o sol de satã


(Sous le Soleil de Satan, 1987)

À primeira vista, Sob o Sol de Satã surpreende os fãs de Pialat acostumados ao olhar bruto e dilacerado de filmes como Aos Nossos Amores, Loulou e Passe Ton Bac d’Abord.  O livro de George Bernanos não oferece somente um cenário diferente das ruas e do universo adolescente que impregna esses filmes. A própria mise en scène aqui é mais controlada, mais estudada, de traço fino, a luz e os movimentos de câmera são suaves. Relativamente fiel ao livro, Pialat deixa que o texto guie os atores. Ao mesmo tempo, ele arquiteta um mundo cinza, sem vida, um universo que conspira, onde as tragédias simplesmente acontecem, corriqueiras.
Primeira manifestação de satã: a câmera faz um discreto giro em 360º passando de Mouchette (Sandrine Bonnaire) a Cadignam (Alain Artur), que entra pela porta e é morto por um tiro de espingarda. A morte é completamente inesperada. O movimento de câmera ajuda a desdramatizar a cena, retirando seu sentido e preservando o choque seco diante do absurdo – algo aconteceu.
Segunda manifestação: Mouchette intimida Gallet (Yann Dedet). Ela fala sem parar, confessa seu crime friamente. Um grito dela encerra a cena – um grito surdo, vazio, a histeria de um corpo que enxerga por um momento a consciência demoníaca que lhe é externa e que a possui.
Vê-se logo que o princípio pialatiano do corpo como entidade deflagradora de intensidades permanece intocado. O que é Donissan (Gerard Depardieu) senão um corpo moribundo? Como pároco, ele é incapaz de cumprir o papel social que esperam dele (“No seminário, era um aluno medíocre. Inteligência, memória, assiduidade, tudo me faltava”). Donissan é tão somente uma massa, um corpo que vaga em busca da iluminação divina ou da perdição do inferno.
Se o corpo permanece, o que muda em Sob o Sol de Satã, então, é sobretudo a linguagem: sai o documentário, entra a adaptação. No lugar do furor e da contaminação pelo mundo, Pialat impõe um registro árido, que nos deixa ver a própria transparência do mal por trás daqueles corpos sem vida e daquelas paisagens cinzas e despovoadas. Palma de Ouro mais do que merecida.

Calac Nogueira
(texto original: http://www.revistainterludio.com.br/?p=3457)

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