quarta-feira, 19 de março de 2014

MEU TIO DA AMÉRICA


de Alain Resnais, Mon Oncle d'Amérique, 1980, França

A) Do filme de Alain Resnais, não sei exatamente o que pensar, mas ao menos que ele mexe em muitas coisas no tocante a uma questão que não se ousa mais fazer: o que é ser francês? E que ele faz persistir, contra pré-julgamentos, irritações, cansaço também (por causa dessa bizarra mistura de ficção sociológica, de tese científica, inserções de cinema antigo), um poder de imaginação de fato desproporcionado à esse cenário: nada, desse quadro de sociedade sombrio, dessa "aula de história" pessimista e dessa comédia à francesa, se sustenta verdadeiramente. O poder do filme está em outro lugar. Ele não age num "conteúdo" (de roteiro, ainda menos de tese), mas nos espaços e durações que ele inventa, entre esse roteiro de intrincações e paralelas, e uma distância que parece filmá-lo como se fosse ficção científica. Mas com um medo, um céu de chumbo que a ficção científica quase não conhece. Esse roteiro desloca em si toda uma época de limbos, de massas de imagens, de latências, silêncios opressores, numa estranha máquina de cinema que filma uma humanidade ainda muito familiar, mas que agora só se parece com o horror de seu futuro, na projeção retroativa de um passado afluente nessas imagens cinzas, essas fotografias.
B) Talvez Resnais seja o mais próximo de Welles, seu discípulo mais independente, mais criador, que transforma todo o problema. Pois, em Welles, um ponto fixo subsiste, mesmo que ele comunique com a terra (contra-plongée). É um presente que se oferece à visão, a morte de alguém, ora dada no começo, ora prefigurada. É também um presente sonoro, a voz de quem recita, a voz off, que constitui um centro radiofônico cujo papel é essencial em Welles. [...] A primeira novidade de Resnais é o desaparecimento do centro ou do ponto fixo. A morte não fixa um atual presente, tantos os mortos que assombram as faixas de passado ("9 milhões de mortos assombram essa paisagem", "200 mil mortos em 90 segundos"). A voz off não é mais central, seja porque ela entra em relações de dissonância com a imagem visual, seja porque ela se divide e se multiplica (as vozes diferentes que dizem "Eu nasci..." em Meu Tio da América). Em regra geral, o presente se põe a flutuar, afetado por incertezas, disperso no vai-e-vem dos personagens, ou já absorvido pelo passado.
C) Naturalmente, a idéia não basta. É impossível saber de partida se ela é boa, e se o escritor que escolhemos saberá desenvolvê-la. É preciso esperar para ter um primeiro texto diante dos olhos. Em seguida, discute-se. Não é sempre agradável, pode custar um tempo, pode-se perceber no meio do caminho que não deu certo. [...] Eu escolho os escritores que me parecem dotados de qualidades dramáticas, que têm o sentido do espetáculo. Eu lhes peço para não pensar na técnica cinematográfica e permanecer fiéis a sua própria linguagem. Se eles possuem verdadeiramente esse senso dramático, eu creio que o trabalho deles produzirá automaticamente imagens cinematográficas originais. O escritor tornar-se-á roteirista. Eu procuro, então, preferencialmente pessoas que ainda não trabalharam para o cinema: é uma garantia de frescor.
A) Enquadrar esse filme distanciado de constatação sociológica (a crise dos quadros nessa fase de mutaçao do capitalismo) seria tão insuficiente quanto reduzi-lo a sua moralidade científica (nossos comportamentos de concorrrência e dominação arruínam a saúde). Se ele se assemelha, mais uma vez, com a ficção científica, é por seu poder de demonstrar (não vejo nele outra lição), num cenário de sociedade contemporânea, que suas construções de espaços e duração são capazes de dar a imaginar um tempo e uma geografia que pode representar, com esse horizonte murado e esse passado cinza, um mundo muito lacunar, uma falta de herdeiros sobre a qual pesa o horror dos limbos, do passado, do futuro, que dão a essa humanidade uma história hojeinimaginável.
D) Grande admirador de O Ano Passado em Marienbad, o cientista Henri Laborit tentou trabalhar com Alain Resnais quando um laboratório farmacêutico lhe propôs filmar um curta-metragem sobre um produto que aumentava a capacidade de memória. O projeto não foi adiante e a partir daí Resnais procurou um produtor para fazer um longa-metragem. Uma vez encontrado, ele pediu a Jean Gruault que escrevesse um roteiro a partir de teses de Henri Laborit misturando relato científico e romanesco.
C) Há os detalhes, e em seguida há a composição. Uma obra pode ser muito realista no detalhe, apoiando-se numa construção formal rigorosa. Observe um quadro de Cézanne: nunca se mostrou melhor a Provence, a paisagem foi apresentada com uma precisão, uma sensibilidade extremas. Ao mesmo tempo, é uma composição abstrata, um jogo de linhas e de formas. A esse respeito, a pintura não-figurativa não modificou nada. Simplesmente, ao invés de partir de um objeto, de uma maçã, de uma árvore, parte-se de um primeiro traço que é colocado arbitrariamente e em torno do qual outros traços se organizam em seqüência. O tema do quadro é o próprio quadro. Talvez se poderia falar de um realismo formalista, se essa mistura de palavras tem um sentido. Tenho a impressão, quando eu filmo, de me prender constantemente aos detalhes. Tento ser tão exato, tão fiel quanto possível. Mas eu não perco jamais de vista o conjunto, a totalidade que é do próprio filme, porque eu sei que para comunicar alguma coisa, é preciso passar pelas formas.
B) Meu Tio da América poderá continuar essa exploração [existente em Hiroshima mon amour, Muriel, A Guerra Acabou] das idades. Três personagens, e cada um tem vários níveis, várias idades. Há constantes: cada idade, cada faixa se definirá por um território, linhas de fuga, obstrução dessas linhas; são as determinações topológicas, cartológicas propostas por Laborit. Mas de uma idade a outra, e de um personagem a outro, a repartição varia. As idades tornam-se idades do mundo, em suas variações, porque elas dizem respeito aos próprios animais, mas também porque elas dizem respeito ao cosmos sobre-humano, a ilha e seu tesouro.
E) A única razão de ser de um ser é ser. Ou seja, manter sua estrutura. É a de se manter vivo. Sem isso, não haveria ser. [...] Um cérebro não serve para pensar, mas para agir.


A: Jean-Pierre Oudart, in Cahiers du Cinéma 314, julho-agosto 1980
B: Gilles Deleuze, Cinema 2. Imagem-Tempo. Paris: Minuit (1ª ed. 1985)
C: Alain Resnais, in L’Arc 31, inverno 1967.
D: Allociné.com (no texto "Sécrets de tournage")
E: Henri Laborit in Meu Tio da América.

Tradução e adaptação: Ruy Gardnier
(texto original:
 http://www.contracampo.com.br/69/meutiodaamerica.htm)

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