de Alain Resnais, Mon
Oncle d'Amérique, 1980, França
A) Do filme de Alain
Resnais, não sei exatamente o que pensar, mas ao menos que ele mexe em muitas
coisas no tocante a uma questão que não se ousa mais fazer: o que é ser
francês? E que ele faz persistir, contra pré-julgamentos, irritações, cansaço
também (por causa dessa bizarra mistura de ficção sociológica, de tese
científica, inserções de cinema antigo), um poder de imaginação de fato
desproporcionado à esse cenário: nada, desse quadro de sociedade sombrio, dessa
"aula de história" pessimista e dessa comédia à francesa, se sustenta
verdadeiramente. O poder do filme está em outro lugar. Ele não age num
"conteúdo" (de roteiro, ainda menos de tese), mas nos espaços e
durações que ele inventa, entre esse roteiro de intrincações e paralelas, e uma
distância que parece filmá-lo como se fosse ficção científica. Mas com um medo,
um céu de chumbo que a ficção científica quase não conhece. Esse roteiro
desloca em si toda uma época de limbos, de massas de imagens, de latências,
silêncios opressores, numa estranha máquina de cinema que filma uma humanidade
ainda muito familiar, mas que agora só se parece com o horror de seu futuro, na
projeção retroativa de um passado afluente nessas imagens cinzas, essas
fotografias.
B) Talvez Resnais
seja o mais próximo de Welles, seu discípulo mais independente, mais criador,
que transforma todo o problema. Pois, em Welles, um ponto fixo subsiste, mesmo
que ele comunique com a terra (contra-plongée). É um presente que se
oferece à visão, a morte de alguém, ora dada no começo, ora prefigurada. É
também um presente sonoro, a voz de quem recita, a voz off, que constitui um centro
radiofônico cujo papel é essencial em Welles. [...] A primeira novidade de
Resnais é o desaparecimento do centro ou do ponto fixo. A morte não fixa um
atual presente, tantos os mortos que assombram as faixas de passado ("9
milhões de mortos assombram essa paisagem", "200 mil mortos em 90
segundos"). A voz off não é mais central, seja porque ela entra em
relações de dissonância com a imagem visual, seja porque ela se divide e se
multiplica (as vozes diferentes que dizem "Eu nasci..." em Meu Tio da América). Em regra
geral, o presente se põe a flutuar, afetado por incertezas, disperso no
vai-e-vem dos personagens, ou já absorvido pelo passado.
C) Naturalmente, a
idéia não basta. É impossível saber de partida se ela é boa, e se o escritor
que escolhemos saberá desenvolvê-la. É preciso esperar para ter um primeiro
texto diante dos olhos. Em seguida, discute-se. Não é sempre agradável, pode
custar um tempo, pode-se perceber no meio do caminho que não deu certo. [...]
Eu escolho os escritores que me parecem dotados de qualidades dramáticas, que
têm o sentido do espetáculo. Eu lhes peço para não pensar na técnica
cinematográfica e permanecer fiéis a sua própria linguagem. Se eles possuem
verdadeiramente esse senso dramático, eu creio que o trabalho deles produzirá
automaticamente imagens cinematográficas originais. O escritor tornar-se-á
roteirista. Eu procuro, então, preferencialmente pessoas que ainda não
trabalharam para o cinema: é uma garantia de frescor.
A) Enquadrar esse
filme distanciado de constatação sociológica (a crise dos quadros nessa fase de
mutaçao do capitalismo) seria tão insuficiente quanto reduzi-lo a sua
moralidade científica (nossos comportamentos de concorrrência e dominação arruínam
a saúde). Se ele se assemelha, mais uma vez, com a ficção científica, é por seu
poder de demonstrar (não vejo nele outra lição), num cenário de sociedade
contemporânea, que suas construções de espaços e duração são capazes de dar a
imaginar um tempo e uma geografia que pode representar, com esse horizonte
murado e esse passado cinza, um mundo muito lacunar, uma falta de herdeiros
sobre a qual pesa o horror dos limbos, do passado, do futuro, que dão a essa
humanidade uma história hojeinimaginável.
D) Grande admirador
de O Ano Passado em Marienbad,
o cientista Henri Laborit tentou trabalhar com Alain Resnais quando um
laboratório farmacêutico lhe propôs filmar um curta-metragem sobre um produto
que aumentava a capacidade de memória. O projeto não foi adiante e a partir daí
Resnais procurou um produtor para fazer um longa-metragem. Uma vez encontrado,
ele pediu a Jean Gruault que escrevesse um roteiro a partir de teses de Henri
Laborit misturando relato científico e romanesco.
C) Há os detalhes, e
em seguida há a composição. Uma obra pode ser muito realista no detalhe,
apoiando-se numa construção formal rigorosa. Observe um quadro de Cézanne:
nunca se mostrou melhor a Provence, a paisagem foi apresentada com uma
precisão, uma sensibilidade extremas. Ao mesmo tempo, é uma composição
abstrata, um jogo de linhas e de formas. A esse respeito, a pintura não-figurativa
não modificou nada. Simplesmente, ao invés de partir de um objeto, de uma maçã,
de uma árvore, parte-se de um primeiro traço que é colocado arbitrariamente e
em torno do qual outros traços se organizam em seqüência. O tema do quadro é o
próprio quadro. Talvez se poderia falar de um realismo
formalista, se essa mistura de palavras tem um sentido. Tenho a impressão,
quando eu filmo, de me prender constantemente aos detalhes. Tento ser tão
exato, tão fiel quanto possível. Mas eu não perco jamais de vista o conjunto, a
totalidade que é do próprio filme, porque eu sei que para comunicar alguma
coisa, é preciso passar pelas formas.
B) Meu Tio da América poderá continuar essa exploração
[existente em Hiroshima mon
amour, Muriel, A Guerra Acabou] das idades.
Três personagens, e cada um tem vários níveis, várias idades. Há constantes:
cada idade, cada faixa se definirá por um território, linhas de fuga, obstrução
dessas linhas; são as determinações topológicas, cartológicas propostas por
Laborit. Mas de uma idade a outra, e de um personagem a outro, a repartição
varia. As idades tornam-se idades do mundo, em suas variações, porque elas
dizem respeito aos próprios animais, mas também porque elas dizem respeito ao
cosmos sobre-humano, a ilha e seu tesouro.
E) A única razão de
ser de um ser é ser. Ou seja, manter sua estrutura. É a de se manter vivo. Sem
isso, não haveria ser. [...] Um cérebro não serve para pensar, mas para agir.
A: Jean-Pierre Oudart, in Cahiers du Cinéma 314, julho-agosto 1980
A: Jean-Pierre Oudart, in Cahiers du Cinéma 314, julho-agosto 1980
B:
Gilles Deleuze, Cinema 2.
Imagem-Tempo. Paris: Minuit (1ª ed. 1985)
C: Alain
Resnais, in L’Arc 31, inverno 1967.
E: Henri
Laborit in Meu Tio da América.
(texto original: http://www.contracampo.com.br/69/meutiodaamerica.htm)
Nenhum comentário:
Postar um comentário