sexta-feira, 25 de abril de 2014

A BIFURCAÇÃO DO DESEJO

por Toni D’Angela



Oh, please let me come into the storm.

Leonard Cohen
A história que James Gray conta, com intensidade e grandeza, é uma anábase, um retiro, um retorno à casa - como outrora com Fuga para Odessa (1994), Caminho Sem Volta (2000) e Os Donos da Noite (2007).

Leonard (Joaquin Phoenix: suspenso entre A Vila e Johnny & June, magnífico) encontra-se perdido, sem rumo, extraviado, um veterano da mais terrível das derrotas: a mulher amada o abandonou. Desde o incipit se vê, ao mesmo tempo, à deriva e empenhado a emergir - das águas claras da baía (como a cidade) em que se jogou, afundando-se como se fosse um rejeitado qualquer, uma pedra, um gás. Desaparecendo, em queda livre. Errante: caminha muito, para entregar as peças lavadas e passadas pelo pai lavadeiro (e já estabelecido); Leonard medita, fantasia, experimenta mais uma vez o gelo da água onde tudo toma forma e se dissolve. Embarca e se molha todo - não há chuva na história nem nunca faz sol. No limiar, entre o fim e o princípio, o désir e o dispositivo de controle, o abismo que o traga durante o suicídio e o retorno à casa, finalmente sed(imen)tado, inserido, instalado, acomodado na poltrona, enquadrado e atado, entre pais e sogros, abraçando, com um olhar vago (ou talvez apenas inseguro?) a futura mulher, anônima e ainda agarrada pelo colarinho por antigas desilusões (no mais aludidas apenas pela sua aparência anêmica), como que antecipada pela imagem triste e melancólica de uma Isabella Rossellini (a mãe de Leonard) curvando-se por detrás da fenda da porta do quarto do filho, à espera de respostas, eventos, vibrações: coração de mãe - que substitui aquele, agora petrificado, de mulher e amante.

Mas, do fundo de uma poltrona dourada (as famílias de Leonard e da sua esposa prometida se preparam para fundir negócios), o andarilho realmente retrocederá para recomeçar? E qual início se abre ou vem destinado? Qual exílio? “O que distingue as pessoas umas das outras é a força de conseguir, ou de deixar que o destino consiga para nós” (cf. F. Pessoa, O Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Feltrinelli, Milão, 2008, p. 27).

Ao invés de inventar novamente seu destino, sua marcha, como os gregos derrotados na Ásia, o seu retorno, Leonard o suportou, deixando exposta a cicatriz. O Controle tritura, na figura do superego genitor onipresente e onívoro: os pais da primeira mulher decidiram pelo término do relacionamento; os pais das duas amantes, Sandra (Vinessa Shaw) e Michelle (Gwyneth Paltrow), ou conspiram ou berram, e finalmente mesmo o amante oficial de Michelle, o advogado de sucesso (Elias Koteas), para subordiná-lo, faz valer o seu papel de pai no único encontro com Leonard. Superego que exemplar e espectralmente encarna-se, aglutina-se e toma corpo na parede da sala de visitas da casa dos pais de Leonard: uma galeria de retratos de família que, como um vórtice, apanha e suga o jovem desesperado. Uma banalidade de base, uma trama que sufoca tudo sob o viaduto de uma cidade anônima (Brighton Beach, Coney Island: já o cenário de Fuga para Odessa, a estréia de Gray realizada em 1994, e Réquiem Para um Sonho de Aronofsky), periférica, marginal, que não pulsa nem fala. Leonard está preso em uma casa na periferia de alguma coisa...

No entanto, os espaços, na história de Gray, desempenham uma função crucial da narrativa, modelando o sentido do texto: da intersecção de forças (personagens) que, por sua vez, torna-se personagem. Um espaço-texto arraigado e implementado nos componentes do décor no qual transcorre a duração, seja aquela interior de Leonard ou aquela interna ao filme. A sala, o terraço, o pátio são os horizontes de sentido em que Gray faz a sua tessitura, construindoAmantes como uma topologia. Na sua superação, Leonard conhece primeiro Sandra e depois Michelle, duas amantes, uma morena e a outra loira, uma confortante e a outra atormentada, uma vizinha e a outra distante. No seu vai-e-vem entre uma e outra, Leonard experimenta as estações, os locais que uma e outra freqüentam e onde se manifestam, e, de vez em quando, aos quais lhe chamam. Sandra é a mediatriz. Polida e simples, cabelos que caem sobre os ombros sem se esparramar, Sandra está sempre em interiores: na casa dos pais de Leonard ou no seu quarto, em um bar na sala em que se comemora o aniversário de seu irmão. Sandra está sempre abrigada, em situações protetoras, domésticas, familiares: ceias de família ou festas com parentes e amigos, sempre, obviamente, da família. Anjo da lareira? Apesar de o fogo parecer já ter se apagado, em uma dialética sem síntese e fantasmática, ela alimenta, no entanto, o desejo. Leonard, com ela, sente-se em casa e, juntos, deslizam até o fundo da poltrona, acomoda-se, ao lado de uma mulher que sabe esperar.

Michelle é lunática, frágil, objeto de voyeurismo, movendo-se entre os extremos e o estupor: droga, discoteca, aborto. Com ela, Leonard caminha na rua, é exposto às intempéries, à chuva (quando na porta do hospital) e especialmente o vento, em particular na cena de amor sobre um terraço hitchcockiano, onde a intensidade se exprime graças ao som, ao vento que sopra, assobia, chia, bate, grita - e já gela. Com ela Leonard está, ao mesmo tempo, à espera e fora de si, longe de casa, pronto para ir para San Francisco e desrespeitando, assim, a maquinação dos pais. Mesmo quando Leonard e Michelle se encontram nos seus quartos e falam um com o outro à distância, esta imediatamente os consome: impulsionados pelos sonhos ou pela desenvoltura, lançando-se à janela, suspensos sobre o pátio do desejo que dá para o início das estrelas. Com ela Leonard experimenta somente os altos e os baixos. Com Sandra faz amor debaixo das cobertas, na cama do seu quarto, em plano médio; com Michelle no terraço, ao passo que embaixo - outro extremo - no pátio desolado e noturno, a mesma Michelle (mas não igual: diferente e capturada em outra fascinação?) o abandona.

Duas mulheres, duas amantes, duas espacialidades, e, para além das caracterizações psicológicas (incluindo a minha), duas imagens mentais de Leonard, duas formas de desejo que, talvez, referem-se à outra mulher, à outra cena, que são o movimento feito de uma foto que queima, a foto-retrato da mulher que o deixou a primeira vez, ou as fotos sepultadas na caixa (como no baú de A Vila); que, no fora de campo da memória, refere-se a outros cancelamentos e perdas:Nostalgia de Hollis Frampton.

O ambiente dessas duas mulheres é duplo, como Leonard, divergido em uma bipolaridade, um agostiniano quero/não quero: joga-se na água para morrer mas depois submerge; aproxima-se, à noite, da água mas depois (estupefato ou intimidado?) recolhe sobre a areia o anel que comprou para Michelle e o dá de presente para Sandra. Este vai-e-vem entre fantasia e sentimento não poupa nem mesmo Michelle e a mais convicta Sandra que, na realidade, apaixonou-se por Leonard antes mesmo de vê-lo, conhecendo sua história (a tentativa de suicídio) apaixonou-se por uma imagem, uma fantasia. Como é assinalado no início do filme, de forma um tanto quanto abstrata: “nós amamos os nossos clientes”, diz o slogan da lavanderia. Nós amamos os nossos fantasmas...

A anábase, ao que parece, leva Leonard da intensidade (o mergulho na baía) à identidade: emoldurado no retrato, no interior de um grupo familiar[1]. Mas, talvez, a autenticidade, na história completamente reconfortante ou sistemática de Gray, esteja em mostrar o retorno de Leonard como um Unheimlich (inquietante) que nada mais é, essencialmente, que o Heimat (pátria, moradia) do homem. É claro que a jornada de Leonard não é um afastamento de suas origens e, ao mesmo tempo, um ressurgimento, um retorno a casa, após o momento hegeliano de exilamento, para, enfim, conciliar-se (o filme me parece estar mais para os lados de Kierkegaard). Não é essa a história do seu subsolo. Leonard, sintomaticamente, é destinado a ser um forasteiro na sua própria pátria, estranho a si mesmo, ao seu ambiente, à sua casa? Gozar do seu desejo, mas na contradição, no estado das coisas, que concatena as vias de fuga (a intensidade) com as conjugações (o matrimônio e o retorno à família).

James Gray não conclui nem condena. Seu filme não é uma objetivação da subjetividade de Leonard, não faz dela uma coisa, um objeto de estudo, não é a lógica ou o juiz: não é o pai agente do capital sem escrúpulos (James Caan emCaminho Sem Volta) ou policial (Robert Duvall em Os Donos da Noite) ou, ainda, acomodado na vida legisladora, imprescindível, monótona. A existência escapa à lógica, que, no final do filme, como um baluarte que o protege da vida, decide no lugar do personagem, e parece impor-se... E com a mãe, encapsulada na memória de amores que não teve, nós também sentimos, até as lágrimas, ternura.

Deram um desejo (uma luva, uma distância, uma memória), um dom para Leonard; e ele desejava todavia abraçá-lo; mas, finalmente, Leonard acumulou pó no quarto e, encerrado entre as prateleiras, endossou o mundo que, incumbido, observava-o pela parede da sala; sem enegrecimento (afogando-se), mas congelando, e depois a bela tempestade de neve; talvez, sem poder mais se aquecer, se não, novamente, na heterogênese do desejo e na bipolaridade constitutiva da história: duas mulheres, dois presentes, dois abraços, duas tentativas de suicídio, duas voltas para casa. E assim essa história, aliás, deveria, a partir daqui, recomeçar ou bifurcar-se.
Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores.

Fernando Pessoa

Nota:                                                             

[1] Referência ao título original do filme de Luchino Visconti, Violência e Paixão (Gruppo di famiglia in un interno, 1974) [n.d.t.].

(Traduzido por Bruno Andrade) 
Texto original: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO3/amantes3.htm

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