Caminho Sem Volta começa e termina exatamente da mesma maneira. Leo
Handler, o personagem de Mark Wahlberg, está sentado no vagão de um trem, o dia
já caindo, a luz alaranjada. Quando primeiro o vemos, ele está voltando para
casa depois de um ano e meio preso por roubo de carros. Suas roupas, seu porte,
sua barba mal-feita, a olhada de canto para um policial que está no mesmo
vagão, tudo nos diz que aquele é um ex-condenado ainda em processo de readaptação
ao "mundo aqui de fora". No fim, depois de passar por uma nova
provação, que é a própria materialidade da trama (um jogo de corrupção política
e banditismo amador que acabam fazendo dele o elo mais fraco de um grande
esquema criminoso), Leo está de volta ao mesmo trem, só que dessa vez de barba
feita, cabelo alinhando, casaco e gravata. O olhar desconfiado, no entanto, é o
mesmo. Tudo em Caminho Sem
Volta nos indicaria que a
trajetória deste sujeito era do tipo expiação-e-redenção, com uma transformação
espiritual obrigatória ali no meio, mas o que James Gray nos entrega é, ao
contrário, a conformação, um quase determinismo.
Pouco antes dessa última imagem de Leo, veremos
uma pequena seqüência no tribunal onde estão sendo julgados todos aqueles que
gerenciavam o esquema corrupto. É uma seqüência imposta à montagem final por
Harvey Weinstein, produtor do filme, e que não consta da versão do diretor
(essa, infelizmente, nunca lançada no Brasil). Ainda que coloque pingos em is
que certamente não deveriam ser tão esclarecidos assim, é a seqüência em que,
pela primeira vez, Leo assume a fabulação de sua própria história, e passa de
objeto a sujeito de uma trama. E ali diz que, com seu testemunho, pode estar
quebrando um código de silêncio que é próprio do "ambiente da rua" do
qual ele é um produto.
Se há algo que conecte os três filmes de James
Gray é exatamente esta idéia da predestinação. Seus personagens estão sempre
metidos numa cadeia de acontecimentos e sensações estabelecidas à sua revelia,
passível de combate e resistência, mas que eventualmente se provará forte
demais para ser vencida. Em Fuga
para Odessa, a existência do irmão caçula de um assassino frio a serviço da
máfia russa pode até sinalizar para a não-repetição dos erros antigos,
depositadas as esperanças de um futuro melhor nesse menino que, tendo convivido
a vida inteira com o mal, não é mau. Em Os
Donos da Noite, a conversão de um bon-vivant com os dois pés fincados na
marginalidade em premiado policial e defensor da lei talvez finalmente cumprisse
uma passagem de bastão entre irmãos, em chave oposta à de Fuga de Odessa: dessa vez a
transmissão da moral fraterna agiria positivamente sobre a vida dos envolvidos.
Mas no filme de 1994, o destino provaria que todos estavam embriagados demais
pelo mal-estar e sordidez do pequeno bairro de imigrantes para conseguirem
empreender qualquer fuga dali. E em 2007, um último olhar do bandido reformado
para a platéia que agora o saúda como policial modelo, um olhar que busca a
figura perdida da namorada latina dos velhos tempos, nos provará que não
houvera reforma nenhuma, mas apenas a adequação a um caminho imposto
historicamente e contra o qual sua natureza íntima não poderia fazer nada a não
ser obedecer. No meio disso, Caminho
Sem Volta e Leo Handler, supostamente
quebrando códigos, subvertendo escritas.
Não é o caso, evidentemente. Leo fora preso pela
primeira vez por um roubo que não praticara sozinho, mas que aquele código da
rua o fizera assumir integralmente. Uma vez mais, quando tomar parte do negócio
sujo comandado pelo tio e levado a cabo por seu melhor amigo, será
responsabilizado por um crime que não cometeu. Mas antes que chegue ao
tribunal, e à quebra do código pela delação, Leo tentará de todas as formas
fazer com que a engrenagem do submundo possa absolvê-lo. O que este
protagonista tenta fazer não é livrar-se de uma acusação expondo ao mundo as
entranhas de um ambiente corrupto. Marginal por natureza, consciente de que
sempre estará metido em confusão, não importa o quão limpo tente ser, Leo só
espera desse ambiente condicionante que ele funcione da maneira certa. Há uma
ética própria da rua, e se ela diz que não se deve dedurar parceiros de crime,
também diz que um parceiro envolvido em problemas com o mundo real, da lei e da
ordem, deve receber toda a ajuda possível, e é isso que Leo não obtém. Sua
delação não é a destruição de um sistema, mas a tentativa de despertá-lo para o
resgate de seus princípios mais básicos, princípios que foram se perdendo na
esteira da ganância e da sede de poder.
Estes sistemas, estes ambientes, estes
organismos sociais, cuja natureza é sempre sangüínea (estamos falando de
famílias, antes de qualquer outra coisa), são tão fortes que trabalham por sua
auto-alimentação. Reuben, o irmão caçula de Fuga
para Odessa, nunca deveria ter pego em armas, mas uma vez diante de uma,
escapar é impossível. Do mesmo medo, era impensável que o Bobby Green deOs
Donos da Noite pudesse
colaborar com a polícia, tanto mais fazer parte dela, mas uma vez que o chamado
é disparado, não há o que fazer a não ser segui-lo. É assim também com Leo
Handler, que só precisava ficar longe das confusões após a saída da prisão, mas
uma vez diante de uma, não consegue fazer nada a não ser participar dela. Que
espaço sobraria para um cineasta que se depara com universos tão fechados em si
senão tentar extirpar daí este caráter cruel de eterno confronto com a
“realidade”, com o pragmatismo de uma situação incontornável? Senão tirar desse
universo seu aspecto totalizador, e então trabalhá-lo em fragmentos, em
pequenas ilhas de espaço-tempo que, não devendo nada a uma ordem geral (“o
destino”), podem finalmente existir enquanto territórios da liberdade, do
não-programado, do não-escrito?
Muda-se de roupa (da jaqueta de ex-presidiário
ao terno e gravata em Caminho
Sem Volta), acumulam-se as fardas (o blazer de dono de boate mais o
uniforme policial em Os Donos
da Noite), e não é o cômputo das transformações que importa, mas sim a
experiência única de cada um desses momentos que compõem o drama do destino.
James Gray, velho cineasta jovem, lida com a seqüência, antes que com o plano –
ainda que destes ele saiba realizar uns mais bonitos que os outros. Seu mundo é
da ordem da cena, a unidade básica de seu cinema é o pequeno acontecimento
dramático. É assim que um diálogo curto entre o filho desgarrado e a mãe doente
à beira da cama ganha ares de epopéia, que a reunião de uma família em volta da
mesa de jantar se transforma num jogo de tensão e expectativa, num embate de
forças mudas. Liberadas da obrigação de conseqüência, uma vez que seu futuro já
está traçado, a cena pode então existir em toda sua complexidade, reverberar
vozes dissonantes, expressar sentimentos difusos e contraditórios. Se o
espírito é imutável, a cena pode fazer dos personagens que nela habitam figuras
de pura ambigüidade – corresponde ao destino o trabalho de aparar arestas e
justificar o passado, a cena não tem qualquer responsabilidade com a verdade,
nem qualquer obrigação senão com ela própria.
É por isso que convivem, no mesmo filme, cenas
como a que a tia de Leo (Faye Dunaway) sugere ao marido que é hora de matar o
sobrinho antes que ele cause problemas à família, num envenenamento mútuo que
só quer convencer a todos ali que a decisão de eliminar o rapaz não é
moralmente discutível, pelo menos não quando é um consenso formado em nome da
manutenção do ambiente; e no lado oposto, a cena em que esta mesma tia, depois
que a tragédia (sempre violenta, drástica, shakesperiana) já se abateu sobre a
trama, esta mesma tia estica a mão em direção ao sobrinho, e o abraça honesta e
sinceramente, trazendo-o de volta ao seio da família, selando uma ligação
inabalável, mas que, até pouco tempo atrás, julgávamos completamente destruída.
O trabalho de Gray com os atores é primoroso, nesse sentido. James Caan
certamente não está no papel de líder dessa máfia umbilical à toa, e é todo o
eco de O Poderoso Chefão e tantas outras narrativas familiares
que nos fazem observar com franca indecisão este seu personagem inconsistente,
duvidoso, agressivalegre. Basta também um travelling em direção ao rosto de Joaquin Phoenix
no banco de um carro, chorando copiosamente, para que saibamos que nenhuma
certeza sobre sua trajetória nos fará cientes do que se passa em seu interior.
E Caminho
Sem Volta é repleto desses
abismos interiores. Cada momento nos deixa ainda mais imersos nesse universo
paralelo, até quase o limite da abstração. Numa simples seqüência de emboscada
(como quando Mark Wahlberg precisa apagar o policial que testemunhará contra
ele, e que acaba de sair do coma num hospital), vai-se do exercício de gênero à
mais direta referência às vanguardas, abandona-se a fabricação do thriller pela experiência compartilhada da
tensão, onde participar do ponto-de-vista do personagem não é apenas uma
maneira de perceber a ação por olhares distintos, mas de fato temer, suar e
fugir como ele, tamanha a atmosfera de opressão. Ainda não se percebia nestas
seqüências de ação de Caminho
Sem Volta a dimensão
metafísica que Gray empregaria na perseguição de carros sob chuva e no milharal
em chamas de Os Donos da Noite,
exatamente porque aqui as relações são todas tácteis, e não experiências do
olhar, como em seu último filme. O termo “submundo” nunca pode ser tão bem
empregado como na trajetória de Leo Handler, e não só porque seu drama envolve
a companhia de metrô. É que sua narrativa opera por claustrofobia, por
sufocamento, por mergulho irrestrito no domínio da cena. Assim, tão instalados
ali, é com quase surpresa que Gray nos oferecerá, lá pelo meio do filme, uma
imagem de televisão em que se exibe uma reportagem sobre as diversas passeatas
e protestos que aconteceram em Nova York desde que o crime contra os
funcionários do metrô acontecera. Ora, nem sequer supúnhamos que existisse um
mundo para fora dos becos escuros e apartamentos pequenos em que Leo se
esconde, para fora dos escritórios e mesas de jantar onde a família armava seus
esquemas, para fora daqueles tormentos específicos, de personagens específicos.
Esse mundo existe, e é exatamente por nos ter feito experimentar tão vivamente
o puro artifício, a ficção em seu mais alto grau, a criação de universos tão
reais quanto se pode creditar à um veículo de invenção como o cinema, que Caminho Sem Volta sinaliza destinos muito mais amplos à
James Gray que aqueles a que submete seus protagonistas.
Rodrigo de Oliveira
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/90/dvdcaminhosemvolta.htm)
Nenhum comentário:
Postar um comentário