quinta-feira, 10 de abril de 2014

CAMINHO SEM VOLTA


James Gray, The Yards, EUA, 2000

Caminho Sem Volta começa e termina exatamente da mesma maneira. Leo Handler, o personagem de Mark Wahlberg, está sentado no vagão de um trem, o dia já caindo, a luz alaranjada. Quando primeiro o vemos, ele está voltando para casa depois de um ano e meio preso por roubo de carros. Suas roupas, seu porte, sua barba mal-feita, a olhada de canto para um policial que está no mesmo vagão, tudo nos diz que aquele é um ex-condenado ainda em processo de readaptação ao "mundo aqui de fora". No fim, depois de passar por uma nova provação, que é a própria materialidade da trama (um jogo de corrupção política e banditismo amador que acabam fazendo dele o elo mais fraco de um grande esquema criminoso), Leo está de volta ao mesmo trem, só que dessa vez de barba feita, cabelo alinhando, casaco e gravata. O olhar desconfiado, no entanto, é o mesmo. Tudo em Caminho Sem Volta nos indicaria que a trajetória deste sujeito era do tipo expiação-e-redenção, com uma transformação espiritual obrigatória ali no meio, mas o que James Gray nos entrega é, ao contrário, a conformação, um quase determinismo.

Pouco antes dessa última imagem de Leo, veremos uma pequena seqüência no tribunal onde estão sendo julgados todos aqueles que gerenciavam o esquema corrupto. É uma seqüência imposta à montagem final por Harvey Weinstein, produtor do filme, e que não consta da versão do diretor (essa, infelizmente, nunca lançada no Brasil). Ainda que coloque pingos em is que certamente não deveriam ser tão esclarecidos assim, é a seqüência em que, pela primeira vez, Leo assume a fabulação de sua própria história, e passa de objeto a sujeito de uma trama. E ali diz que, com seu testemunho, pode estar quebrando um código de silêncio que é próprio do "ambiente da rua" do qual ele é um produto.

Se há algo que conecte os três filmes de James Gray é exatamente esta idéia da predestinação. Seus personagens estão sempre metidos numa cadeia de acontecimentos e sensações estabelecidas à sua revelia, passível de combate e resistência, mas que eventualmente se provará forte demais para ser vencida. Em Fuga para Odessa, a existência do irmão caçula de um assassino frio a serviço da máfia russa pode até sinalizar para a não-repetição dos erros antigos, depositadas as esperanças de um futuro melhor nesse menino que, tendo convivido a vida inteira com o mal, não é mau. Em Os Donos da Noite, a conversão de um bon-vivant com os dois pés fincados na marginalidade em premiado policial e defensor da lei talvez finalmente cumprisse uma passagem de bastão entre irmãos, em chave oposta à de Fuga de Odessa: dessa vez a transmissão da moral fraterna agiria positivamente sobre a vida dos envolvidos. Mas no filme de 1994, o destino provaria que todos estavam embriagados demais pelo mal-estar e sordidez do pequeno bairro de imigrantes para conseguirem empreender qualquer fuga dali. E em 2007, um último olhar do bandido reformado para a platéia que agora o saúda como policial modelo, um olhar que busca a figura perdida da namorada latina dos velhos tempos, nos provará que não houvera reforma nenhuma, mas apenas a adequação a um caminho imposto historicamente e contra o qual sua natureza íntima não poderia fazer nada a não ser obedecer. No meio disso, Caminho Sem Volta e Leo Handler, supostamente quebrando códigos, subvertendo escritas.

Não é o caso, evidentemente. Leo fora preso pela primeira vez por um roubo que não praticara sozinho, mas que aquele código da rua o fizera assumir integralmente. Uma vez mais, quando tomar parte do negócio sujo comandado pelo tio e levado a cabo por seu melhor amigo, será responsabilizado por um crime que não cometeu. Mas antes que chegue ao tribunal, e à quebra do código pela delação, Leo tentará de todas as formas fazer com que a engrenagem do submundo possa absolvê-lo. O que este protagonista tenta fazer não é livrar-se de uma acusação expondo ao mundo as entranhas de um ambiente corrupto. Marginal por natureza, consciente de que sempre estará metido em confusão, não importa o quão limpo tente ser, Leo só espera desse ambiente condicionante que ele funcione da maneira certa. Há uma ética própria da rua, e se ela diz que não se deve dedurar parceiros de crime, também diz que um parceiro envolvido em problemas com o mundo real, da lei e da ordem, deve receber toda a ajuda possível, e é isso que Leo não obtém. Sua delação não é a destruição de um sistema, mas a tentativa de despertá-lo para o resgate de seus princípios mais básicos, princípios que foram se perdendo na esteira da ganância e da sede de poder.

Estes sistemas, estes ambientes, estes organismos sociais, cuja natureza é sempre sangüínea (estamos falando de famílias, antes de qualquer outra coisa), são tão fortes que trabalham por sua auto-alimentação. Reuben, o irmão caçula de Fuga para Odessa, nunca deveria ter pego em armas, mas uma vez diante de uma, escapar é impossível. Do mesmo medo, era impensável que o Bobby Green deOs Donos da Noite pudesse colaborar com a polícia, tanto mais fazer parte dela, mas uma vez que o chamado é disparado, não há o que fazer a não ser segui-lo. É assim também com Leo Handler, que só precisava ficar longe das confusões após a saída da prisão, mas uma vez diante de uma, não consegue fazer nada a não ser participar dela. Que espaço sobraria para um cineasta que se depara com universos tão fechados em si senão tentar extirpar daí este caráter cruel de eterno confronto com a “realidade”, com o pragmatismo de uma situação incontornável? Senão tirar desse universo seu aspecto totalizador, e então trabalhá-lo em fragmentos, em pequenas ilhas de espaço-tempo que, não devendo nada a uma ordem geral (“o destino”), podem finalmente existir enquanto territórios da liberdade, do não-programado, do não-escrito?

Muda-se de roupa (da jaqueta de ex-presidiário ao terno e gravata em Caminho Sem Volta), acumulam-se as fardas (o blazer de dono de boate mais o uniforme policial em Os Donos da Noite), e não é o cômputo das transformações que importa, mas sim a experiência única de cada um desses momentos que compõem o drama do destino. James Gray, velho cineasta jovem, lida com a seqüência, antes que com o plano – ainda que destes ele saiba realizar uns mais bonitos que os outros. Seu mundo é da ordem da cena, a unidade básica de seu cinema é o pequeno acontecimento dramático. É assim que um diálogo curto entre o filho desgarrado e a mãe doente à beira da cama ganha ares de epopéia, que a reunião de uma família em volta da mesa de jantar se transforma num jogo de tensão e expectativa, num embate de forças mudas. Liberadas da obrigação de conseqüência, uma vez que seu futuro já está traçado, a cena pode então existir em toda sua complexidade, reverberar vozes dissonantes, expressar sentimentos difusos e contraditórios. Se o espírito é imutável, a cena pode fazer dos personagens que nela habitam figuras de pura ambigüidade – corresponde ao destino o trabalho de aparar arestas e justificar o passado, a cena não tem qualquer responsabilidade com a verdade, nem qualquer obrigação senão com ela própria.

É por isso que convivem, no mesmo filme, cenas como a que a tia de Leo (Faye Dunaway) sugere ao marido que é hora de matar o sobrinho antes que ele cause problemas à família, num envenenamento mútuo que só quer convencer a todos ali que a decisão de eliminar o rapaz não é moralmente discutível, pelo menos não quando é um consenso formado em nome da manutenção do ambiente; e no lado oposto, a cena em que esta mesma tia, depois que a tragédia (sempre violenta, drástica, shakesperiana) já se abateu sobre a trama, esta mesma tia estica a mão em direção ao sobrinho, e o abraça honesta e sinceramente, trazendo-o de volta ao seio da família, selando uma ligação inabalável, mas que, até pouco tempo atrás, julgávamos completamente destruída. O trabalho de Gray com os atores é primoroso, nesse sentido. James Caan certamente não está no papel de líder dessa máfia umbilical à toa, e é todo o eco de O Poderoso Chefão e tantas outras narrativas familiares que nos fazem observar com franca indecisão este seu personagem inconsistente, duvidoso, agressivalegre. Basta também um travelling em direção ao rosto de Joaquin Phoenix no banco de um carro, chorando copiosamente, para que saibamos que nenhuma certeza sobre sua trajetória nos fará cientes do que se passa em seu interior.

E Caminho Sem Volta é repleto desses abismos interiores. Cada momento nos deixa ainda mais imersos nesse universo paralelo, até quase o limite da abstração. Numa simples seqüência de emboscada (como quando Mark Wahlberg precisa apagar o policial que testemunhará contra ele, e que acaba de sair do coma num hospital), vai-se do exercício de gênero à mais direta referência às vanguardas, abandona-se a fabricação do thriller pela experiência compartilhada da tensão, onde participar do ponto-de-vista do personagem não é apenas uma maneira de perceber a ação por olhares distintos, mas de fato temer, suar e fugir como ele, tamanha a atmosfera de opressão. Ainda não se percebia nestas seqüências de ação de Caminho Sem Volta a dimensão metafísica que Gray empregaria na perseguição de carros sob chuva e no milharal em chamas de Os Donos da Noite, exatamente porque aqui as relações são todas tácteis, e não experiências do olhar, como em seu último filme. O termo “submundo” nunca pode ser tão bem empregado como na trajetória de Leo Handler, e não só porque seu drama envolve a companhia de metrô. É que sua narrativa opera por claustrofobia, por sufocamento, por mergulho irrestrito no domínio da cena. Assim, tão instalados ali, é com quase surpresa que Gray nos oferecerá, lá pelo meio do filme, uma imagem de televisão em que se exibe uma reportagem sobre as diversas passeatas e protestos que aconteceram em Nova York desde que o crime contra os funcionários do metrô acontecera. Ora, nem sequer supúnhamos que existisse um mundo para fora dos becos escuros e apartamentos pequenos em que Leo se esconde, para fora dos escritórios e mesas de jantar onde a família armava seus esquemas, para fora daqueles tormentos específicos, de personagens específicos. Esse mundo existe, e é exatamente por nos ter feito experimentar tão vivamente o puro artifício, a ficção em seu mais alto grau, a criação de universos tão reais quanto se pode creditar à um veículo de invenção como o cinema, que Caminho Sem Volta sinaliza destinos muito mais amplos à James Gray que aqueles a que submete seus protagonistas.

Rodrigo de Oliveira

(Texto original: http://www.contracampo.com.br/90/dvdcaminhosemvolta.htm)

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