James Gray, We Own the Night,
EUA, 2007
Em Zodíaco e Os Donos da Noite, uma certa linha da imagem foi ultrapassada ou mantida à distância. Estamos muito abaixo ou muito acima de uma operação de esteta. Ou na fronteira, difícil estabelecer. Percebemos que o essencial do filme se acha na construção, mas esta se esquiva, não fica em realce. É um tipo ambíguo de invisibilidade da direção, onde a mise en scène é tudo e simultaneamente nada. Perto de qualquer outro filme deFincher (que se notabilizou pelos excessos), Zodíaco chega a parecer um cine-jornal. E, no entanto, não se pode dizer que o diretor abriu mão do estilo, muito pelo contrário. Reconhecemos que há um filtro estético e que ele está longe de ser insignificante, mas não sabemos ao certo em que lugar ele nos instala. Frontalidade, secura? Ou maneirismo ainda maior que trabalha por vias alternativas? Os Donos da Noite lança questões semelhantes: James Gray está avançado demais no código, esgarçando o cinema de gênero como só uma série B saberia fazer, ou recuando estrategicamente, concentrando-se nos interstícios, focando as nuances, o drama de fundo do cinema policial e de máfia. Dá para se ater a essa segunda hipótese, das nuances e dos interstícios, por boa parte do filme... Mas o que dizer então quando explodem as cenas de confronto em tours de forcemagnificamente orquestrados?
O cinema americano sempre teve essa reserva de penumbra para os procedimentos estéticos que não se colam nem a modismos nem à reprodução fiel de um sistema formal constituído. Os Donos da Noite traz a consciência de pertencer a uma história dos estilos e de integrar um imaginário que atravessa décadas. É um filme policial estilo anos 70 que se passa nos anos 80 e mostra a guerra entre a polícia e a máfia como nos anos 30. E com estrutura dramática shakespeariana. Partindo disso, vários curtos-circuitos são possíveis. Gray não adere ao vintage, e sua diegese se constrói sem usar os signos de maneiracool e sem recorrer às referências fáceis que geralmente são mobilizadas para estabelecer o clima da época em que a história se passa. Os Donos da Noite é ambientado noBrooklyn em 1988. Bobby (Joaquin Phoenix) é o gerente da mega boate El Caribe, cujos donos são mafiosos russos. Devido ao sucesso do estabelecimento, Bobby é convidado a administrar uma nova filial, talvez emManhattan. Ele é o futuro dono da noite nova-iorquina, como fala entusiasmado para seu amigo Jumbo. Mas seu universo entra em colapso quando a mesma máfia russa dona do El Caribe declara guerra à polícia da qual fazem parte seu pai e seu irmão, interpretados por Robert Duvall e Mark Wahlberg. Como em The Yards, Gray demonstra uma grande sabedoria na escolha do elenco, reunindo atores novos e antigos.
O início de Os Donos da Noite já é extraordinário. Primeiro uma sucessão de fotos documentais em preto-e-branco, mostrando batidas policiais, locais com drogas, cenas de crimes etc. Depois o filme vai para o El Caribe. Lá, Bobbyencontra Amada (Eva Mendes) se masturbando num sofá, com“Heart of Glass” da Blondie tocando ao fundo. Eles estão prestes a transar, mas Jumbo bate na porta e interrompe o namoro. Bobby precisa ir no andar térreo resolver uma confusão provocada por duas mulheres dançando semi-nuas em cima do balcão do bar e alguns bêbados brigando. Gray faz um contraste entre essa situação caótica e a confraternização bem comportada dos policiais, no galpão ao lado de uma igreja (cuja arquitetura remete ao El Caribe, num espelhamento em certa medida até clichê entre o templo religioso e a boate moderna). A conversão de Bobby a policial já está indicada nessa passagem de espaços na seqüência inicial do filme. Trata-se menos de uma escolha moral do que de uma transmissão familiar inelutável – o assustador desse processo é que ele envolve a perda de uma "liberdade" que o irmão no fundo invejava em Bobby. Se por um lado há uma influência setentista forte, por outro não estamos no terreno da corrupção policial como em Serpico (SidneyLumet) ou Operação França (William Friedkin). O filme se concentra menos na corporação do que na família. Alguém pode lembrar, e com razão, da voga de ficções familiares desta década, de Sopranos ao Cronenberg recente, mas o registro aqui é totalmente outro.
A ação tem um valor todo próprio em Os Donos da Noite. Para um filme que não é o que se pode chamar de “agitado”, e que na verdade deve provocar o tédio de muita gente, é no mínimo curioso constatar que ele possui: 1) a melhor cena de perseguição de carro dos últimos anos (podem falar da – realmente delirante – seqüência final de À Prova de Morte do Tarantino à vontade, porque garanto que Gray foi além), 2) uma cena de emboscada extremamente tensa e imersiva e 3) um clímax arrebatador, daqueles de ficar impregnado na memória, pedindo uma revisão do filme. Na perseguição, quase todos os planos são feitos de dentro do carro de Bobby. Chove torrencialmente, os mafiosos cercam seu carro, mandam tiros, o pai dele é morto logo à frente, o carro pega uma contramão e quase bate em dezenas de outros: acontece de tudo e a seqüência é filmada entre a confusão completa (realmente estamos tão atordoados com a perseguição quanto o personagem) e a suprema mestria na construção dos pontos de vista e no uso do som. O ponto de vista, aliás, é uma questão estética crucial no filme. Quando Bobby vai ao encontro dos mafiosos com uma escuta escondida no isqueiro, Gray vai progressivamente mergulhando na construção subjetiva, a cena se pautando cada vez mais nos sons e nas visões deBobby. No encontro anterior, com o capanga de Vadim(vilão dos vilões), sabíamos de antemão que Bobby se entregaria por um detalhe: ele acende seus cigarros com fósforo, mas a escuta está num isqueiro. Uma vez descoberto por Vadim, Bobby solta a senha mágica, já combinada anteriormente, e a polícia chega. No meio do tiroteio, uma bala zune no ouvido de Bobby e o mundo fica abafado e irreal. Uma troca de tiros monumental, uma verdadeira guerra, em questão de segundos se torna “leve como uma pena”. No clímax, depois que Bobby entra à caça de Vadim no meio do mato, ao qual foi atiçado fogo, ocorre uma nova cena de total imersão, reforçada pela fumaça que toma conta da imagem e, novamente, pelo peculiar uso do som. A cena de Bobby retornando do meio da fumaça tem uma dimensão espiritual que não estamos acostumados a ver no cinema de gênero contemporâneo.
Momentos de êxtase, portanto, não faltam. Acontece que James Gray rejeita operações confortáveis na sua mise enscène – nem o conforto do bom artesão lhe interessa. Suas exigências, assim, tornam-se ainda maiores; seus deleites visuais, mais recônditos. À exceção de um ou outro slow motion (há um de Eva Mendes fumando que é sensacional), Gray rejeita também as facilidades do icônico, instalando-se num universo de enquadramentos regidos por dinâmicas mais complexas, como a claustrofobia de alguns planos. A suprema arte de Gray se deixa ver nos corpos dos atores, nos ambientes, nos gestos de aproximação ou distanciamento entre os personagens (como em toda a impressionante relação dePhoenix com Wahlberg). E nas sombras inquietantes, vez ou outra vampirescas, desse filme noturno e fascinante pelo qual James Gray nos fez aguardar durante não menos que seis anos. Tudo bem: deve ser o tempo de amadurecimento do seu talento e da sua exigência.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/89/critdonosdanoite.htm)
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