domingo, 17 de agosto de 2014

Corrida Sem Fim, de Monte Hellman


Two-Lane Blacktop, EUA, 1971

É já na primeira seqüência de Corrida Sem Fim que somos apresentados ao peculiar universo onde a trama irá se desenrolar: um universo de motores envenenados e máquinas possantes, um universo que só pode se tornar concreto com fumaça de canos de descarga e racing cars, veículos diminuídos aos seus esqueletos para desempenharem o máximo possível nas estradas. Sem dúvida um universo perigoso, que nas mãos de um Dominic Sena ou de um George Miller poderia resultar numa obra de valores duvidosos. Mas nas mãos de Monte Hellman, Corrida Sem Fim se faz um dos mais importantes e representativos títulos do cinema americano dos últimos 30 anos.
Logo no início somos apresentados aos personagens do Piloto e do Mecânico (é desta maneira que são creditados). Ambos dividem umChevrolet '55. Observamos a preparação e a execução de uma corrida. Após a corrida, surgem os créditos. Vemos apenas os faróis de um carro iluminando uma pista, seguindo em velocidade acelerada ao som de alguma música que toca no rádio (qualquer semelhança com A Estrada Perdida não deve ser interpretada como mera coincidência).
Acompanhamos por um breve tempo o cotidiano dos dois rapazes. Eles raramente conversam, e quando o fazem é para falar sobre o carro, sobre algum problema de alguma peça ou para combinar os detalhes de uma corrida. A austeridade na mise en scène de Hellman é um traço muito forte: não foi apenas o carro que eles desmontaram até chegar ao mínimo necessário para desempenhar o máximo nas tais corridas, mas também suas vidas e seu relacionamento.
Seguimos pela estrada com o Piloto e o Mecânico. Param numa lanchonete de posto de gasolina. Nesta parada é introduzida a Garota. Aparentemente sem destino, ela resolve pegar carona com os rapazes. Uma quebra no universo, uma pessoa a mais para seguir viagem.
Haverá ainda mais uma quebra no universo do Piloto e do Mecânico: a entrada em cena de G.T.O., um homem de meia-idade que cata "caroneiros" pelas rodovias por onde anda e inventa histórias sobre seu passado (que, por sinal, se confunde com a história do seu país). G.T.O., o Piloto e o Mecânico apostam uma corrida até a cidade de Washington. E é a corrida, a batalha e o embate entre todos estes personagens que Hellman irá dissecar durante o filme.
Em termos de trama, Corrida Sem Fim, como todos os filmes de Hellman, é mínimo. Como o relacionamento de seus protagonistas e como o carro dirigido pelo Piloto, Hellman retira apenas o necessário do roteiro escrito por Rudy Wurtlizer (também roteirista em Pat Garrett & Billy the Kid, de Sam Peckinpah, e O Pequeno Buda, de Bernardo Bertolucci). A grandiosidade se insere não por aquilo que é filmado, mas como aquilo acaba sendo filmado, pois a câmera de Hellman não julga, não sentencia e não define nada, jamais: sua câmera captura, registra e observa a ação; sua câmera contempla e serve àquilo que está sendo filmado.
Para entendermos o cinema de Hellman não devemos fazer como aqueles que costumam comparar sua obra com a de Antonioni e outros cineastas europeus importantes das décadas de 50/60 (embora possamos observar semelhanças fortes entre o cinema de Hellman e o cinema de Antonioni), devemos partir sim é do cinema clássico americano de Howard Hawks, John Ford e Anthony Mann, o triunvirato da famosa "direção invisível". Pode ser argumentado que o cinema de Hellman, ao contrário do cinema dos três "senhores", é um cinema sem ação. Ora, trata-se de um grosseiro equívoco, pois o que tanto Hellman quanto Hawks, Ford e Mann filmam é sim a ação, mas a ação inserida no espaço, com o espaço servindo como catalisador. É desta maneira, pois, que avaliaremos Corrida Sem Fim, O Tiro Certo, A Vingança de um Pistoleiro e o restante da obra de Hellman.
É, portanto, fundamental o papel do espaço em um filme comoCorrida Sem Fim. Seja ao capturar as inacabáveis rodovias percorridas pelos personagens e seus carros, seja ao filmar uma colina que o Piloto e o Mecânico irão atravessar, seja ao filmar um barranco onde a Garota e o Piloto observam a imensidão do mundo, é partindo do espaço que Hellman irá definir aquilo que realmente importa no seu filme: a distância de um ponto de partida e a ausência de um destino, algum lugar para onde ir. Pois se existe um destino, e este sabemos que é Washington, ele acaba perdendo a importância durante o percurso: a viagem é necessariamente de descoberta, de introspecção, de vida e de compreensão daquilo que nos cerca.
E é na caracterização de Warren Oates, que interpreta G.T.O., que perceberemos exatamente o que importa na viagem que Hellman nos oferece. Se Hellman usa o espaço como catalisador das ações de seus personagens, Oates serve perfeitamente como catalisador das emoções do filme. Se o Piloto, o Mecânico e a Garota personificam a necessidade de seguir em frente, de prosseguir o caminho sem se preocupar com o que está por vir, o G.T.O. de Warren Oates personifica a angústia de não se ter um destino, de se procurar uma vida para se ter e de sempre perdê-la, sempre deixá-la escapar exatamente por ter de continuar na viagem. Impossível não admirar o trabalho do veterano ator, intérprete fetiche de Peckinpah e de Hellman, como o inventor de histórias que usa a cada cena uma caxemira de cor diferente e mantém um mini-bar no porta-malas de seu carro. Toda a humanidade do mundo é expressa por um sorriso, um olhar ou uma frase de Oates.
Seria injusto esquecer do cantor James Taylor, interpretando o Piloto, com sua voz suave que contrasta com a opacidade de seu personagem; ou do grande Dennis Wilson, integrante dos Beach Boys, como o Mecânico que examina o Chevrolet '55 com a mesma calma que a câmera de Hellman observa seus reparos na máquina; ou de Laurie Bird, a Garota, com sua beleza selvagem que parece escapar de seu domínio. Injusto também esquecer de citar a fotografia de Gregory Sandor, com sua iluminação quase que imperceptível e seus movimentos de câmera lentos e cuidadosos.
Há ainda muitas coisas a serem lembradas. Há a primeira cena com a Garota, ao som de Hit the Road, Jack, onde Hellman e Sandor usam de maneira magnífica a profundidade de campo do sistema Techniscope; há o encontro entre o Piloto, o Mecânico, a Garota e G.T.O. num posto de gasolina, onde se dará a aposta que embalará o restante do filme, que é uma verdadeira aula de decupagem, do verismo "o diretor é alguém que não fica no seu caminho", dito uma vez por Howard Hawks; há diversos pequenos momentos entre Laurie Bird e James Taylor, ou Laurie Bird e Dennis Wilson, ou Laurie Bird e Warren Oates, que são detentores de muito mais mundo que qualquer coisa que diretores como Steven Spielberg e Guy Ritchie obtiveram nos cursos de suas carreiras; e há a cena final, inesquecível e inigualável, que realmente socorre o sentido da palavra "emblemático", pois simboliza - como poucas - o perenal caminho que os protagonistas de Corrida Sem Fim ainda irão trilhar.
"I got no time for sidetracks". É o que em determinado momento o personagem de Warren Oates, contraditoriamente, fala ao "caroneiro" interpretado por Harry Dean Stanton (o Travis de Paris, Texas), durante uma discussão. E, de certo modo, é a sensação que temos ao descobrir este belíssimo filme do grande cineasta que é Monte Hellman, pois no seu cinema o que importa é a ação, o decurso; é o agora, jamais o futuro; é o que nós, meros "caroneiros", presenciamos e apreendemos da vida e do mundo que cerca seus personagens. E tudo aquilo que escapa da nossa percepção parece não ter importância, pois o que está na tela é mais valioso do que aquilo que escapa dela (ao contrário, por exemplo, de um Michelangelo Antonioni ou de um Brian De Palma, dois gigantes do cinema da reflexão). E se de fato é grande um cinema que se propõe a capturar alguns fragmentos de mundo sem jamais impor ao espectador verdades absolutas acerca do mundo capturado, entãoCorrida Sem Fim é gigante.

Bruno Andrade
(Texto original: http://www.contracampo.com.br/33/corridasemfim.htm)

Um comentário:

  1. Corrida Sem Fim é um filme de homem: mulheres não costumam sustentar tão extenso e tão intenso silêncio. Um silêncio que, por um lado, sela o impenetrável de cada um; e, por outro lado, materializa um voto de respeito: não invadir com perguntas, nem fustigar com comentários fúteis. Um silêncio cuja dignidade vem a ser sublinhada, em contraste, pelos discursos reiterados do personagem mitomaníaco, que fala sem parar, tentando, inutilmente, ocultar sua dolorosa verdade.

    Mesmo sendo um filme de homem, ou até, quem sabe, por isso mesmo, dá lugar a um personagem feminino que se faz paradigma dessa ficção que nos é tão cara – o mito da liberdade humana.

    Para mim, muito longe de “lutar pelos direitos da mulher” num mundo de machos, supostamente muito livres, a garota simplesmente exerce suas escolhas: responde à vida, aqui e agora, imune a propostas sedutoras, vãs tentativas de tomá-la como propriedade; deixa tudo - literalmente - para seguir o convite que bem lhe apetece; não beija nem se entrega a qualquer um - só a quem ela escolhe. E não pede a ninguém que pague a conta.

    Quanto à decisão de se ler um “preenchimento do vazio existencial” na entrega total de si mesmos – motorista e mecânico – ao carro, à estrada e à velocidade, só posso concordar se levarmos esta leitura a um limite radical: não apenas eles, mas todos nós.

    Todos.

    Todos nada mais fazemos que tentar preencher, de um modo ou de outro, o vazio de uma existência que, para todos, não tem qualquer conteúdo previamente dado.

    A adequação cultural de nossas escolhas e identificações narcisistas nos convidam a pensar que somos exceção, levando-nos à leitura benevolente: ELES respondem a um vazio existencial - subentendendo que nós não.

    Mas não devemos nos iludir.

    Até porque, no final, o filme queima sempre.

    Vera Lucia

    ResponderExcluir