Nous ne
Vieillirons Pas Ensemble, 1972
Nós Não Envelheceremos Juntos é um choque de realidade, mas não falo de um conceito abstrato de realidade que supostamente revelaria os mecanismos de funcionamento de um mundo, não me refiro a uma realidade que vaza a construção estética e artificializada do cinema. Falo da realidade tátil e material, que em alguma medida dispensa uma acentuada autoconsciência estética. Uma realidade elementar: da ação, do corpo e do caos sem os mais tradicionais atenuantes moduladores. Pialat tem uma busca valente, e naturalmente inglória, em fazer filmes que abram mão de uma beleza estética, do pathos da arte que fascina pela possibilidade de construir um sentido em um trabalho que conjugue estilo e forma.
E este
é provavelmente o filme mais duro da História. E esse “duro” diz respeito à
solidez original daquilo que é filmado, em sua comum dificuldade em se fazer
ver no cinema, porque, ao contrário do que se possa imaginar, é difícil (na
verdade impossível) ver as imagens no cinema a partir de sua brutalidade
original, pois é natural que tudo que a câmera filme seja modulado visando a
construção de um sentido, até mesmo os filmes tão parcimoniosos de Maurice
Pialat. Por isso, depois da afirmação do choque e da dureza, não custa dizer: o
filme de Pialat é um grande fracasso. E que se diga: nesse sentido, todos os
seus filmes são os maiores fracassos de história do cinema, coisa que o cinema
moderno desejou, mas nem sempre conseguiu. Nós Não Envelheceremos Juntos é o testemunho de uma impotência
ontológica do cinema, uma impotência da aparência, da organização, da
superfície, do culto das formas. Por isso Pialat usa a matéria da realidade não
para documentar emoções, intensidades (tanto do que se sente quanto do que se
vê) e estados de ânimo. Uma fratura no cinema moderno.
Aqui
temos a história breve, densa e no limite do fôlego do fracasso de um casal,
Jean e Catherine. Só que não interessa a Pialat um certo tipo de desdobramento
dramático que nos dê a ver a saturação de uma relação, mas a reunião em blocos
de estados emocionais desesperados. O cinema moderno (Pialat, cineasta moderno,
é seu grande representante crítico) se fez a partir da concepção do amor
atravessado pelo desespero, pela consciência do fim, pela experiência
desorientada da perda. Mas enquanto muitos cineastas como Godard, Truffaut e
Garrel, cada um à sua maneira, realizaram em seus filmes mais célebres uma
espécie de réquiem para um amor que finda ou que se tornou impossível, Pialat
só consegue enxergar essa situação por meio do desgaste emocional a partir de
ações violentas, frágeis e contraditórias. O fracasso do amor é uma série de
iniciativas estéreis, de atos que giram em falso, de palavras que faltam, de
ações que se excedem. Jean é um belo amante nas cartas à Catherine, mas não
consegue sê-lo na prática, ainda que o sentimento de suas cartas seja
verdadeiro. O amor como experiência estética se dá na poesia e a realidade não
pode consumá-lo tal como a linguagem deseja. Pialat está entre ambos, sua
(anti)poesia é inaudita e física, se realiza por meio de solavancos de
violência.
Entre o
casal não há a justa medida e o essencial. O amor, assim como a morte, seria
uma experiência concentrada do caos da vida. É como se Pialat declarasse que o
amor é um cão dos diabos e que a beleza melancólica do fim do amor romântico
pode ser também mais uma invenção estética artificializada, burguesa e
decadente. O fracasso do amor aqui não é poetizável, porque é experiência
concreta de dor, raiva e impotência. Jean e Catherine não são entidades e nem
arquétipos como o masculino e feminino do cinema, são seres do tamanho de suas
ações. O espanto, no fim das contas, é com uma força ofuscante e exasperada das
desventuras desses corpos sentimentais. O sentimento existe não sugestionado
por uma música ou por signos de beleza, mas porque Pialat nos mostra que as emoções
só são visíveis nas contradições dos gestos, das ações e no equívoco e na
falência das palavras. Sua arte reside no desajuste entre tudo que é e existe.
A nudez das imagens em Nós Não Envelheceremos Juntos não tem inocência. Em razão de tudo
isso a obra de Maurice Pialat continua sendo um problema para os postulados do
cinema francês, para tradição moderna e para a crítica. É um cineasta a se
redescobrir continuamente. É um mistério.
(Texto original: http://www.revistainterludio.com.br/?p=3438)
Repetição é um conceito básico no entendimento psicanalítico da neurose. Nós, os neuróticos, repetimos. O que repetimos? Repetimos um arranjo muito particular de estímulos e respostas, que acabam por cooptar um ou mais interlocutores para o desenvolvimento de uma espécie de jogo – um jogo mórbido, monótono sob aparência de diversidade.
ResponderExcluirRepete-se compulsivamente. Alteram-se os protagonistas, os cenários, as circunstâncias, o tempo e o lugar – mas o enredo fundamental é sempre o mesmo e leva sempre ao mesmo desfecho: uma explosão de sofrimento. Sofrimento que é gozo, vai reconhecer Lacan.
O golpe de mestre de Maurice Pialat em “Nós não envelheceremos juntos” é, justamente, recortar o tempo e alinhar, em série, os sucessivos lances do jogo de repetição que Jean e Catherine desenvolvem, com a regularidade do Real, que retorna sempre ao mesmo lugar.
Pialat subtrai os intervalos que, na vida, atenuam a crueldade do jogo e dão fôlego aos jogadores para, aparentemente movidos pela esperança (desta vez vai dar certo), relançarem a aposta. O que surge da maestria do seu corte é a repetição crua de uma cena perversa reiterada, onde os intervalos de distensão, que não passam de respiros para relançar o jogo e ocultar o seu objetivo sinistro, foram eliminados. Daí resulta que a verdade fica exposta.
O final é ambíguo: Catherine conseguiu, desde a repetição, elaborar o seu fantasma e encontrar uma alternativa de satisfação um pouco descolada da miséria neurótica? Ou apenas mudou de parceiro para, com ele, continuar a jogar o jogo?
Não sabemos.
Vera Lúcia de Oliveira e Silva