Muito bem, depois da
admirável reflexão do amigo Ranieri sobre o retorno formal a que Anthony Mann
se propôs em sua carreira, ao dialogar não só com os princípios dos pré-cinemas
e da própria encenação teatral, não posso deixar de trazer à tona um aspecto
que ressaltei várias vezes nos textos do Especial: o retorno de Mann ao
Trágico. Até porque perceberemos aí, uma espécie de linha que comprova ser o retorno
também uma evolução, uma ousadia que exige muito mais tato e consciência para
que atinja mérito.
Lembrando que o gênero
trágico é a única forma narrativa da Antiguidade essencialmente mantida no
decorrer da história – a despeito dos inevitáveis rearranjos de contexto
sociais –, encontramos na obra de Anthony Mann uma continuidade exata das bases
presentes nessa modalidade, que, pela pertinência dos tempos modernos, resulta
numa intensidade de maiores possibilidades e conseqüências.
Talvez nenhum outro cineasta
tenha seguido, como Mann, a cartilha padrão da Tragédia greco-romana tão
fielmente, a exemplo de seu percurso pelo noir na década de 40. É inútil pescar
referências ou exemplos particulares de filmes, se toda sua filmografia daquela
década reflete inequivocamente o espírito do que a Poética de Aristóteles
definiu quase 4 séculos a.C. Todos por aqui já estão devidamente situados sobre
as condições existenciais dos personagens de Mann em seus filmes noir; assim
como a Tragédia dita o destino, todos eles sobrevivem como regidos por um fio
manipulador que distancia as chances de o subjetivo manifestar-se. Não há noir
de Mann (e porque não compreender o mesmo para o próprio noir, se Mann foi um
dos definidores de sua grafia básica) que não priorize o deslocamento de seu
protagonista/herói arrancando-o de um ponto pacífico, que não se baseie num
princípio da crise, da instauração do caos, surgido habitualmente por
banalidades do cotidiano, por peripécias do dia-a-dia que porventura empurram
toda uma vida à beira de um abismo.
À solidão a que esses
personagens são confinados acrescente-se o signo da falta, a potencialidade de
uma ausência que percorre cada um dos filmes de Anthony Mann – onde já
incluímos a fase pós-50. Seja um nome, um amor, uma família, um território, uma
fortuna, uma arma, uma memória, não há enredo em que Mann não parta de um vazio
agenciador do estado solitário do indivíduo. E é na solidão que o Trágico se
configura; dela vem à luz a plenitude do lírico, única alternativa
discursivo-estética que o homem moderno encontra para permanecer trágico.
O rigor de Mann no
acompanhamento aristotélico pode ainda ser percebido em detalhes mínimos, como
por exemplo, a duração de seus filmes. Assim como o filósofo afirmou que a
duração da Tragédia deve ser concentrada ao máximo, em peças que não excedam
uma hora, todos sabemos da habilidade de Mann em narrar as mais complexas
tramas na menor duração possível, seja por opção criativa, seja por limitações
de produção, não importa, o que conta é a feliz coincidência.
Também poderemos
compreender melhor sob o viés trágico de Mann a ambigüidade com que ele
trabalhou seus dois gêneros principais: o noir e o western. Assim como os
gregos foram pautados pela homogeneidade do mundo/das formas, em Anthony Mann
teremos um amálgama dos dois ambientes clássicos por excelência ao cinema
americano, num equilíbrio quase indiscernível de tão sutil. Apesar de seu lugar
histórico e cultural (Hollywood) não permitir maiores arroubos de vanguarda,
Anthony Mann não se deixou calar, chegando a abrir uma ferida nessas
convenções. Aliás, eis uma de suas características maiores: transgredir pelo
conservador. O rompimento nos limites dos gêneros, algo que só encontraria
destaque nos cinemas novos pós-60, é prioridade de Mann a cada filme realizado;
daí encontrarmos saloons e desertos nos becos sujos dos ambientes urbanos,
assim como expressividade de sombras e formas na abertura das paisagens do
velho oeste.
Finalmente, o preceito
da transformação a ser vivido pelo herói trágico, a mudança necessária de seu
destino, é um último ponto que levanto dentro do universo de Anthony Mann
(ainda há outros, mas estou tentando ser aristotelicamente conciso). Se em
alguns casos temos heróis que se transformam de assassinos em redentores,
também encontraremos o extremo oposto disso; o que importa é que sempre, sem
exceção, as situações narrativas de Mann se resolverão dramaticamente, com
personagens transformados em outros, sem que jamais se perca a individualidade
original.
Daí onde podemos aplicar
ao próprio lugar alcançado por Anthony Mann no registro cinematográfico
clássico, uma configuração primeira de cinema trágico, ou seja, em crise,
solitário, concentrado, lírico, e profundamente transformador. Um cinema
conscientemente ancorado numa tradição não apenas da imagem em movimento, mas
de toda uma dimensão humana da representação artística, capaz de atualizar
inquietações das mais antigas ao homem enquanto se presta a uma renovação do
veículo utilizado. Fazer isso, convenhamos, é o mais heróico dos atos.
(Texto original: http://multiplotcinema.com.br/antigo/2010/05/12/o-ultimo-tragico/)
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