segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O Último Trágico


Muito bem, depois da admirável reflexão do amigo Ranieri sobre o retorno formal a que Anthony Mann se propôs em sua carreira, ao dialogar não só com os princípios dos pré-cinemas e da própria encenação teatral, não posso deixar de trazer à tona um aspecto que ressaltei várias vezes nos textos do Especial: o retorno de Mann ao Trágico. Até porque perceberemos aí, uma espécie de linha que comprova ser o retorno também uma evolução, uma ousadia que exige muito mais tato e consciência para que atinja mérito.
Lembrando que o gênero trágico é a única forma narrativa da Antiguidade essencialmente mantida no decorrer da história – a despeito dos inevitáveis rearranjos de contexto sociais –, encontramos na obra de Anthony Mann uma continuidade exata das bases presentes nessa modalidade, que, pela pertinência dos tempos modernos, resulta numa intensidade de maiores possibilidades e conseqüências.
Talvez nenhum outro cineasta tenha seguido, como Mann, a cartilha padrão da Tragédia greco-romana tão fielmente, a exemplo de seu percurso pelo noir na década de 40. É inútil pescar referências ou exemplos particulares de filmes, se toda sua filmografia daquela década reflete inequivocamente o espírito do que a Poética de Aristóteles definiu quase 4 séculos a.C. Todos por aqui já estão devidamente situados sobre as condições existenciais dos personagens de Mann em seus filmes noir; assim como a Tragédia dita o destino, todos eles sobrevivem como regidos por um fio manipulador que distancia as chances de o subjetivo manifestar-se. Não há noir de Mann (e porque não compreender o mesmo para o próprio noir, se Mann foi um dos definidores de sua grafia básica) que não priorize o deslocamento de seu protagonista/herói arrancando-o de um ponto pacífico, que não se baseie num princípio da crise, da instauração do caos, surgido habitualmente por banalidades do cotidiano, por peripécias do dia-a-dia que porventura empurram toda uma vida à beira de um abismo.
À solidão a que esses personagens são confinados acrescente-se o signo da falta, a potencialidade de uma ausência que percorre cada um dos filmes de Anthony Mann – onde já incluímos a fase pós-50. Seja um nome, um amor, uma família, um território, uma fortuna, uma arma, uma memória, não há enredo em que Mann não parta de um vazio agenciador do estado solitário do indivíduo. E é na solidão que o Trágico se configura; dela vem à luz a plenitude do lírico, única alternativa discursivo-estética que o homem moderno encontra para permanecer trágico.
O rigor de Mann no acompanhamento aristotélico pode ainda ser percebido em detalhes mínimos, como por exemplo, a duração de seus filmes. Assim como o filósofo afirmou que a duração da Tragédia deve ser concentrada ao máximo, em peças que não excedam uma hora, todos sabemos da habilidade de Mann em narrar as mais complexas tramas na menor duração possível, seja por opção criativa, seja por limitações de produção, não importa, o que conta é a feliz coincidência.
Também poderemos compreender melhor sob o viés trágico de Mann a ambigüidade com que ele trabalhou seus dois gêneros principais: o noir e o western. Assim como os gregos foram pautados pela homogeneidade do mundo/das formas, em Anthony Mann teremos um amálgama dos dois ambientes clássicos por excelência ao cinema americano, num equilíbrio quase indiscernível de tão sutil. Apesar de seu lugar histórico e cultural (Hollywood) não permitir maiores arroubos de vanguarda, Anthony Mann não se deixou calar, chegando a abrir uma ferida nessas convenções. Aliás, eis uma de suas características maiores: transgredir pelo conservador. O rompimento nos limites dos gêneros, algo que só encontraria destaque nos cinemas novos pós-60, é prioridade de Mann a cada filme realizado; daí encontrarmos saloons e desertos nos becos sujos dos ambientes urbanos, assim como expressividade de sombras e formas na abertura das paisagens do velho oeste.
Finalmente, o preceito da transformação a ser vivido pelo herói trágico, a mudança necessária de seu destino, é um último ponto que levanto dentro do universo de Anthony Mann (ainda há outros, mas estou tentando ser aristotelicamente conciso). Se em alguns casos temos heróis que se transformam de assassinos em redentores, também encontraremos o extremo oposto disso; o que importa é que sempre, sem exceção, as situações narrativas de Mann se resolverão dramaticamente, com personagens transformados em outros, sem que jamais se perca a individualidade original.
Daí onde podemos aplicar ao próprio lugar alcançado por Anthony Mann no registro cinematográfico clássico, uma configuração primeira de cinema trágico, ou seja, em crise, solitário, concentrado, lírico, e profundamente transformador. Um cinema conscientemente ancorado numa tradição não apenas da imagem em movimento, mas de toda uma dimensão humana da representação artística, capaz de atualizar inquietações das mais antigas ao homem enquanto se presta a uma renovação do veículo utilizado. Fazer isso, convenhamos, é o mais heróico dos atos.
(Texto original: http://multiplotcinema.com.br/antigo/2010/05/12/o-ultimo-tragico/)

Nenhum comentário:

Postar um comentário