terça-feira, 19 de agosto de 2014

GÊNIO DE HOWARD HAWKS


A evidência é a marca do gênio de Hawks: Monkey Business é um filme genial e se impõe ao espírito pela evidência. Alguns porém se recusam, ainda se recusam a satisfazer-se com asserções. A ignorância não tem talvez outras causas.
Dramas e comédias dividem igualmente sua obra: ambivalência remarcável; ainda mais remarcável é a frequente fusão dos dois elementos, que parecem se afirmar em vez de se comprometer, e se afinam reciprocamente. A comédia nunca está ausente das tramas mais dramáticas; longe de comprometer o sentimento trágico, ela o conserva do conforto da fatalidade na conservação de um equilíbrio perigoso, uma incerteza provocante que acrescenta ao poder do drama. Sua tartamudez não pode preservar da morte o secretário de Scarface; o sorriso que The Big Sleep quase todo o tempo desperta é inseparável do pressentimento de perigo; o clímax de Red River, no qual o espectador não é mais capaz de refrear o desconcerto de seus sentimentos e se pergunta por quem toma partido e se deve rir ou temer, resume um tremor de pânico de todos os nervos, uma atônita vertigem sobre a corda bamba onde o pé titubeia sem exatamente escorregar, tão insuportável quanto o desenrolar de alguns sonhos.
E se a comédia dá ao trágico sua eficácia, a mesma não pode dispensar totalmente, talvez não o trágico - não vamos comprometer nossos melhores argumentos indo longe demais –mas o sentimento severo de uma existência em que nenhuma ação pode livrar-se da teia da responsabilidade. Poderia nos ser oferecida uma visão de vida mais amarga que esta? Tenho de confessar que sou bastante incapaz de me juntar às risadas da plateia enquanto estou fixado nas peripécias calculadas de uma trama (Monkey Business) que se aplica em contar–com uma lógica alegre, uma eloquência perversa- as etapas fatais da degradação de mentes superiores.
Não é acidente que grupos similares de intelectuais aparecem tanto em Ball ofFire quanto emThe ThingfromAnother World. Mas Hawks não está tão preocupado com a sujeição do mundo à visão glacial e desencantada de uma mente científica, como está por retraçar as cômicas desventuras da inteligência. Hawks não se preocupa com sátira ou psicologia; sociedades significam para ele não mais que os sentimentos; diferente de Capra ou McCarey, Hawks está preocupado somente com a aventura do intelecto. Quer ele oponha o velho ao novo, uma soma de todo o conhecimento do passado à outra de formas degradadas da vida moderna (Ball ofFire, A Song is Born), ou o homem à fera (Bringingup Baby), ele permanece com o mesmo temada intrusão do não-humano, ou de um avatar mais cru da humanidade, em uma sociedade altamente civilizada. Em The Thing, a máscara finalmente é retirada: nos confins do universo, alguns homens da ciência estão às voltas com uma criatura pior que inumana, uma criatura de outro mundo; e seus esforços tentam primeiramente enquadrá-la nas molduras lógicas do conhecimento humano.
Mas em Monkey Business o inimigo penetrou no homem em si; o sutil veneno do rejuvenescimento, a tentação de juventude da qual sabemos depois de muito tempo não ser um dos mais sutis subterfúgios do mal - aqui um basset, ali um macaco – no momento em queuma rara inteligência se mantém em cheque. E a mais nefasta das ilusões, contra a qual Hawks luta com um pouco de crueldade: a adolescência, a infância são estados bárbaros dos quais somos resgatados pela educação; A criança mal se distingue do selvagem que imita em seus jogos; uma vez bebido o licor precioso, o mais digno senhor encontra prazer em imitar um chimpanzé. Pode-se reconhecer aqui uma concepção clássica do homem, como criatura cujo único caminho para a grandeza passa pela experiência e pela maturidade; no final de seu progresso, sua velhice o julga.
Ainda pior que o infantilismo, a degradação, a decadência - a fascinação que exercem sobre a inteligência mesma; o filme não é somente a história dessa fascinação, como se propõe ao espectador como demonstração de seu poder. Assim, qualquer um que critique essa tendência deve primeiro submeter-se a ela. Os macacos, os índios, os peixes dourados não são mais que as aparências de uma mesma obsessão pelo elementar, onde se confundem os ritmos selvagens, a doce estupidez de Marilyn Monroe (aquele monstro de feminilidade que o figurinista quase deformou) ou os ímpetos davelha bacante em que Ginger Rogers se transforma quando se reverte à adolescência e suas rugas parecem ir embora. A euforia maquinal das ações dos personagens dão à feiura e à infâmia um lirismo, uma densidade expressiva que os eleva à abstração; a fascinaçãotoma conta, dá beleza às metamorfoses, em retrospecto. Pode-se chamar expressionista a arte com a qualCary Grant transforma seus gestos em símbolos; no instante em que ele se maquia de índio, como não recordar do célebre plano deO Anjo Azul no qual Jannings contempla no espelho sua face distorcida. Não é de modo algum superficial comparar essas duas histórias paralelas de ruína; lembramos como os temas da danação e da maledicência no cinema alemão impuseram a mesma progressão rigorosa do razoável ao odioso.
Do close-up do chimpanzé ao momento em que a fralda escorrega naturalmente do bebê Cary Grant, o espírito é chamado a uma constante vertigem de impudor; e o que é esse sentimento senão uma mistura de medo, censura - e fascinação? A atração dos instintos, o abandono aos poderes terrestres e primitivos, mal, feiura, estupidez - todas as máscaras do demônio são, nessas comédias em que a própria alma é tentada à bestialidade, combinadas à logica extrema; a ponta mais aguda da inteligência volta-se contra si mesma. I Was a Male War Bride toma como assunto simplesmente a impossibilidade de encontrar um lugar para dormir, prolongando-o à exaustãoe aos extremos da desestabilização e desmoralização.
Melhor do que ninguém, Hawks sabe que a arte deve ir aos extremos, mesmo aos extremos da infâmia, pois este é o domínio da comédia. Ele jamais tem medo de usar as mais bizarras peripécias, uma vez que as deixou pressentir, menos preocupado em desapontar a baixeza de espírito do espectador que em saciá-la dando um passo além. Esse é também o gênio de Molière, cujo frenesi lógico suscita menos frequentemente o riso que o nó na garganta. Esse é também o gênio de Murnau, cujo admirável Tartufo,a famosa cena com a Dama Martha, e várias sequências de A última Gargalhada oferecem ainda modelos de um cinema Molièresco.
Há em Hawks, cineasta da inteligência e do rigor, porém junto de forças obscuras e fascinações, um espírito germânico atraído por delírios metódicos onde se engendram infinitamente as consequências, onde a continuidade faz o papel de Destino; seus heróis demonstram isto nem tanto em seus sentimentos como em seus gestos, que ele persegue meticulosamente com paixão; são ações que ele filma, meditando sobre o poder de sua aparência, somente. Que nos importam os pensamentos de John Wayne enquanto caminha em direção a Montgomery Clift no final de Red River, ou nos de Bogart durante uma surra; nossa atenção é dirigida somente à precisão de cada passo - o ritmo exato da caminhada - de cada golpe – ao abatimento progressivo do corpo maltratado.
Mas Hawks epitomiza ao mesmo tempo as mais altas virtudes do cinema americano, o único cineasta que sabe como nos propor uma moral; daí a perfeita encarnação,admirável síntese que contém talvez o segredo de seu gênio. Não é uma ideia que é fascinante num filme de Hawks, mas sua efetividade; o ato nos retém menos por sua beleza que por seu efeito no interior do universo que o contém.
Tal arte demanda uma honestidade fundamental, o emprego do tempo e do espaçoé testemunha disso - sem flashback, sem elipse, a continuidade é a regra. Nenhum personagem desaparece sem que o acompanhemos, e nada surpreende o herói que não nos surpreenda ao mesmo tempo. A disposição e o encadeamento de cada gesto são por força de uma lei, mas uma lei biológicacomo aquela que governa cada ser vivo; cada tomada possui a beleza funcional de um pescoço ou de um tornozelo. A sucessão, suave e rigorosa,reencontra o ritmo das pulsações do sangue; o filme inteiro, corpo glorioso, vivo por uma respiração resiliente e profunda.



A obsessão pela continuidade ordena o gênio de Hawks; ela lhe dita o senso de monotonia e lhe associa frequentemente à ideia de percurso e itinerário (Air Force, Red River); eis um universo homogêneo onde tudo está ligado, tempo ao espaço e espaço ao tempo. Assim em certos filmes onde a comédia tem uma parte maior (ToHaveandHaveNot, The Big Sleep), os personagens estão circunscritos a alguns cenários, por onde se movem em vão. Adivinhamos a gravidade de cada movimento de alguém que não podemos abandonar. Quer evoquemos Scarface, cujo reino se encolhe das cidades que dominava ao quarto ondeé encurralado, os cientistas que não ousam deixar a cabana por medo d'A Coisa; quer nos lembremos como os pilotos envolvidos no campo pela neblina escapam às vezes para as montanhas (OnlyAngelsHaveWings), como Bogart escapa para o mar, do hotel onde vagava impotente entre o porão e seu quarto (ToHaveandHaveNot); quer reencontremos o eco burlesco destes temas em Ball ofFire, onde o gramático se evade do universo hermético das bibliotecas para os perigos da cidade, ou em Monkey Business, onde as fugas traduzem os acometimentos de juventude (como I was a Male War Bride retoma em outro registro o tema do itinerário) – sempre o espaço exprime o drama; as variações de cenário modelam a continuidade do tempo. O passo do herói traça as figuras de seu destino.
A monotonia não é mais que uma máscara:de lentas e profundas maturações, se esconde um progresso obstinado, as conquistas feitas passo a passo sobre o solo e sobre si ao mesmo tempo – até o paroxismo. Aqui a lassitude como instrumento dramático – a exasperação de homens que se refrearam por duas horas, que pacientemente condensaram ante nossos olhos a cólera, o ódio ou o amor, e eis que os liberam bruscamente, tal como pilhas lentamente saturadas que por fim emitem uma faísca.O sangue-frio exaspera o calor de seu sangue; a calma a qual eles se aplicam nos força a sentir sua emoção, a partilhar o tremor secreto de seus nervos e de sua alma - até que o copo transborda. Um filme de Hawks muitas vezes possui a mesma sensação de uma espera ansiosa pela queda de uma gota d'água.
As comédias dão a essa monotonia outra face:a repetição substitui o progresso, como a retórica de Raymond Roussel substituindo a de Peguy; os mesmos feitos, retomados vezes sem fim, agravados poruma persistência maníaca, uma paciência de obcecado, turbilhonam sem controle, como se a mercê de um maelstrom ridículo.
Que outro gênio, mesmo mais tomado pela continuidade, poderia ser mais apaixonadamente interessado nas consequências dos atos, às relações que os unem; suas influências, suas repulsões, suas atrações constituem um universocontínuo e coerente, universo Newtoniano onde se impõe a lei da gravitação universal e o sentimento profundo da gravidade da existência. Os gestos do homem são pesados e medidos por um mestre preocupado com as responsabilidades dos mesmos.
A medida desses filmes é a inteligência, mas uma inteligência pragmática, aplicada diretamente ao mundo sensível, e que alcança a eficácia mediante o ponto de vista preciso de uma profissão ou de qualquer forma de atividade humana às voltas com o universo e ansiosa por conquistas. Marlowe em The Big Sleep pratica uma profissão assim como um cientista ou um piloto; e quando Bogart aluga seu barco em ToHaveandHaveNot, quase não olha para o mar, menos preocupado com a beleza das ondasque com a dos passageiros; todo rio foi feito para ser atravessado, todo rebanho para prosperar e ser vendido pelo preço mais alto. Mesmo sedutoras, mesmo amadas, as mulheres devem aderir à busca.
É impossível evocar adequadamente ToHaveandHaveNot sem imediatamente relembrar da luta com os peixes que abre o filme. O universo não pode ser conquistado sem conflito, e este é o ambiente natural dos heróis de Hawks: combate corpo-a-corpo, lutas calorosas, que enlaçamento mais estreito pode-se esperar com outro ser? Assim o amor existe mesmo com aperpétua oposição; é um duelo incansávelonde o perigo constanteos intoxica da evidência do próprio sangue(The Big Sleep, Red River). Da luta nasce a estima - essa admirável palavra que compreende de uma vez conhecimento, apreciação e simpatia; o oponente torna-se parceiro. Mas que desgosto se é preciso combater um inimigo que a isso se recusa;Marlowe, tomado de uma amargura repentina, precipita os eventos e se apressa em levá-los aos seus fins.
A maturidade cai bem a esses homens reflexivos, heróis de um mundo adulto, muitas vezes quase que exclusivamente masculino, onde o trágico reside nas relações pessoais. A comédia vem da intrusão e confrontação de elementos estranhos, ou de mecanismos que lhes tiram o livre-arbítrio - essa liberdade de decisão pela qual um homem se exprime e se afirmaem seu ato como no ato de criar.
Não quero parecer estar louvando aqui um gênio a frente de seu tempo; mas a evidência de suas ligaçõesao nosso século me impede de articular isso.  Prefiro, em vez disso, apontar como, se se atém às vezes à pintura do derrisório e do absurdo, Hawks se aplica antes a dar um sentido e um gosto de viver a esses fantasmas e lhes abençoar com uma grandeza insólita, de alguma nobreza a muito tempo secreta; como ele dá à sensibilidade moderna uma consciência clássica. Red River e OnlyAngelsHaveWings não reclamam outra filiação que não a deCorneille; a ambiguidade, a complexidade são privilégios dos mais nobres sentimentos, que alguns creem ainda como monótonos, ainda que sejam mais rapidamente exauridos os instintos, as barbáries, as razõesdas almas cruas - eis o porquê dos romances modernos seremchatos.
Finalmente, como poderia omitir a menção dessasadmiráveis introduções, em que o herói se estabelece por sua duração com uma fluida plenitude. Sem preliminares, sem artifícios de exposição; uma porta abre, e lá está ele logo no primeiro plano, a conversação começa e nos familiariza discretamente com seu ritmo pessoal; depois desse instante onde nós o surpreendemos,como poderíamos deixá-lo, companheiros de sua viagem, que se desenrola tão certa e regularmente como o filme através do projetor. Ritmo de uma marcha assim flexível e constante como a dos alpinistas que partem como passo firme e o conservarãoassim através das trilhas mais ásperas, até o final dasmais longas etapas.
Assim, desde essas primeiras pulsações, não estamos somente certos de que os heróis não nos deixarão de modo nenhum, também sabemos que manterão ao excessotodas as suas promessas;não fazem parte da raça dos covardes nem dos indecisos: nada pode com efeito se opor à admirável obstinação, à tenacidade dos heróis de Hawks; uma vez a caminho, continuarão até o fim de si mesmose do que prometeram,por uma forma extrema da lógica, venha o que vier; o que começou tem de ser terminado. Pouco importa se os heróis foram no começo envolvidos contra sua vontade; ao perseguir, ao alcançar seus fins, provam sua liberdade e a honra de chamar-se homens. Para eles a lógica não é alguma fria faculdade intelectual, mas a coerência do corpo, a harmonia e a continuidade de seus atos,a lealdade a si mesmos. A força da vontade garante a unidade do homem e do espírito, atadosnaquilo que tanto justifica sua existência como lhes dá seu significado mais alto.
Se é verdade que a fascinação nasce dos extremos e de tudo aquilo que ousa o excesso, e que a audácia se chama assim grandeza - então segue-se que tal fascinação não desdenhaessas forças em marcha, que combinam à precisão intelectual dos poderes abstratos os valores elementares dos grandes impulsos terrestres, as equações às tempestades, numa afirmação da vida. Todo filme de Hawks não oferece senão antes de tudo à beleza esta afirmação tranquila e certa, sem retorno nem remorsos. Ele prova o movimento ao andar, a existência ao respirar. Que o que é, é.

Jacques Rivette

(publicado originalmente na CahiersduCinèma nº23, maio de 1953. Tradução livre a partir do texto original e da versão em inglês presente em jacques-rivette.com)

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