A evidência é a marca do gênio de Hawks: Monkey Business é um
filme genial e se impõe ao espírito pela evidência. Alguns porém se recusam,
ainda se recusam a satisfazer-se com asserções. A ignorância não tem talvez
outras causas.
Dramas e comédias dividem igualmente sua obra: ambivalência remarcável;
ainda mais remarcável é a frequente fusão dos dois elementos, que parecem se
afirmar em vez de se comprometer, e se afinam reciprocamente. A comédia nunca
está ausente das tramas mais dramáticas; longe de comprometer o sentimento
trágico, ela o conserva do conforto da fatalidade na conservação de um
equilíbrio perigoso, uma incerteza provocante que acrescenta ao poder do drama.
Sua tartamudez não pode preservar da morte o secretário de Scarface; o
sorriso que The Big Sleep quase todo o tempo desperta é inseparável do
pressentimento de perigo; o clímax de Red River, no qual o espectador
não é mais capaz de refrear o desconcerto de seus sentimentos e se pergunta por
quem toma partido e se deve rir ou temer, resume um tremor de pânico de todos
os nervos, uma atônita vertigem sobre a corda bamba onde o pé titubeia sem
exatamente escorregar, tão insuportável quanto o desenrolar de alguns sonhos.
E se a comédia dá ao trágico sua eficácia, a mesma não pode dispensar
totalmente, talvez não o trágico - não vamos comprometer nossos melhores
argumentos indo longe demais –mas o sentimento severo de uma existência em que
nenhuma ação pode livrar-se da teia da responsabilidade. Poderia nos ser
oferecida uma visão de vida mais amarga que esta? Tenho de confessar que sou
bastante incapaz de me juntar às risadas da plateia enquanto estou fixado nas
peripécias calculadas de uma trama (Monkey
Business) que se aplica em contar–com uma lógica alegre, uma eloquência
perversa- as etapas fatais da degradação de mentes superiores.
Não é acidente que grupos similares de intelectuais aparecem tanto em Ball ofFire quanto emThe ThingfromAnother World. Mas Hawks
não está tão preocupado com a sujeição do mundo à visão glacial e desencantada
de uma mente científica, como está por retraçar as cômicas desventuras da
inteligência. Hawks não se preocupa com sátira ou psicologia; sociedades
significam para ele não mais que os sentimentos; diferente de Capra ou McCarey,
Hawks está preocupado somente com a aventura do intelecto. Quer ele oponha o
velho ao novo, uma soma de todo o conhecimento do passado à outra de formas
degradadas da vida moderna (Ball ofFire,
A Song is Born), ou o homem à fera (Bringingup Baby), ele permanece com o
mesmo temada intrusão do não-humano, ou de um avatar mais cru da humanidade, em
uma sociedade altamente civilizada. Em The
Thing, a máscara finalmente é retirada: nos confins do universo, alguns
homens da ciência estão às voltas com uma criatura pior que inumana, uma
criatura de outro mundo; e seus esforços tentam primeiramente enquadrá-la nas
molduras lógicas do conhecimento humano.
Mas em Monkey Business o
inimigo penetrou no homem em si; o sutil veneno do rejuvenescimento, a tentação
de juventude da qual sabemos depois de muito tempo não ser um dos mais sutis
subterfúgios do mal - aqui um basset, ali um macaco – no
momento em queuma rara inteligência se mantém em cheque. E a mais nefasta das ilusões, contra a qual Hawks luta com um
pouco de crueldade: a adolescência, a infância são estados bárbaros dos quais
somos resgatados pela educação; A criança mal se distingue do selvagem que
imita em seus jogos; uma vez bebido o licor precioso, o mais digno senhor
encontra prazer em imitar um chimpanzé. Pode-se reconhecer aqui uma concepção
clássica do homem, como criatura cujo único caminho para a grandeza passa pela
experiência e pela maturidade; no final de seu progresso, sua velhice o julga.
Ainda pior que o infantilismo, a degradação, a decadência - a fascinação
que exercem sobre a inteligência mesma; o filme não é somente a história dessa
fascinação, como se propõe ao espectador como demonstração de seu poder. Assim,
qualquer um que critique essa tendência deve primeiro submeter-se a ela. Os macacos,
os índios, os peixes dourados não são mais que as aparências de uma mesma
obsessão pelo elementar, onde se
confundem os ritmos selvagens, a doce estupidez de Marilyn Monroe (aquele
monstro de feminilidade que o figurinista quase deformou) ou os ímpetos davelha
bacante em que Ginger Rogers se transforma quando se reverte à adolescência e
suas rugas parecem ir embora. A euforia maquinal das ações dos personagens dão
à feiura e à infâmia um lirismo, uma densidade expressiva que os eleva à
abstração; a fascinaçãotoma conta, dá beleza às metamorfoses, em retrospecto. Pode-se
chamar expressionista a arte com a qualCary Grant transforma seus gestos em
símbolos; no instante em que ele se maquia de índio, como não recordar do
célebre plano deO Anjo Azul no qual
Jannings contempla no espelho sua face distorcida. Não é de modo algum
superficial comparar essas duas histórias paralelas de ruína; lembramos como os
temas da danação e da maledicência no cinema alemão impuseram a mesma
progressão rigorosa do razoável ao odioso.
Do close-up do chimpanzé ao
momento em que a fralda escorrega naturalmente do bebê Cary Grant, o espírito é
chamado a uma constante vertigem de impudor; e o que é esse sentimento senão
uma mistura de medo, censura - e fascinação? A atração dos instintos, o abandono
aos poderes terrestres e primitivos, mal, feiura, estupidez - todas as máscaras
do demônio são, nessas comédias em que a própria alma é tentada à bestialidade,
combinadas à logica extrema; a ponta mais aguda da inteligência volta-se contra
si mesma. I Was a Male War Bride toma
como assunto simplesmente a impossibilidade de encontrar um lugar para dormir,
prolongando-o à exaustãoe aos extremos da desestabilização e desmoralização.
Melhor do que ninguém, Hawks sabe que a arte deve ir aos extremos, mesmo
aos extremos da infâmia, pois este é o domínio da comédia. Ele jamais tem medo
de usar as mais bizarras peripécias, uma vez que as deixou pressentir, menos
preocupado em desapontar a baixeza de espírito do espectador que em saciá-la dando
um passo além. Esse é também o gênio de Molière, cujo frenesi lógico suscita
menos frequentemente o riso que o nó na garganta. Esse é também o gênio de
Murnau, cujo admirável Tartufo,a
famosa cena com a Dama Martha, e várias sequências de A última Gargalhada oferecem ainda modelos de um cinema Molièresco.
Há em Hawks, cineasta da inteligência e do rigor, porém junto de forças
obscuras e fascinações, um espírito germânico atraído por delírios metódicos
onde se engendram infinitamente as consequências, onde a continuidade faz o
papel de Destino; seus heróis demonstram isto nem tanto em seus sentimentos como
em seus gestos, que ele persegue meticulosamente com paixão; são ações que ele filma, meditando sobre o
poder de sua aparência, somente. Que nos importam os pensamentos de John Wayne
enquanto caminha em direção a Montgomery Clift no final de Red River, ou nos de Bogart durante uma surra; nossa atenção é
dirigida somente à precisão de cada passo - o ritmo exato da caminhada - de
cada golpe – ao abatimento progressivo do corpo maltratado.
Mas Hawks epitomiza ao mesmo tempo as mais altas virtudes do cinema
americano, o único cineasta que sabe como nos propor uma moral; daí a perfeita encarnação,admirável síntese que contém
talvez o segredo de seu gênio. Não é uma ideia que é fascinante num filme de
Hawks, mas sua efetividade; o ato nos retém menos por sua beleza que por seu
efeito no interior do universo que o contém.
Tal arte demanda uma honestidade fundamental, o emprego do tempo e do
espaçoé testemunha disso - sem flashback,
sem elipse, a continuidade é a regra. Nenhum personagem desaparece sem que o
acompanhemos, e nada surpreende o herói que não nos surpreenda ao mesmo tempo.
A disposição e o encadeamento de cada gesto são por força de uma lei, mas uma lei
biológicacomo aquela que governa cada ser vivo; cada tomada possui a beleza
funcional de um pescoço ou de um tornozelo. A sucessão, suave e rigorosa,reencontra
o ritmo das pulsações do sangue; o filme inteiro, corpo glorioso, vivo por uma
respiração resiliente e profunda.
A obsessão pela continuidade ordena o gênio de Hawks; ela lhe dita o
senso de monotonia e lhe associa frequentemente à ideia de percurso e
itinerário (Air Force, Red River);
eis um universo homogêneo onde tudo está ligado, tempo ao espaço e espaço ao
tempo. Assim em certos filmes onde a comédia tem uma parte maior (ToHaveandHaveNot, The Big Sleep), os personagens estão circunscritos a alguns cenários,
por onde se movem em vão. Adivinhamos a gravidade de cada movimento de alguém que não podemos abandonar.
Quer evoquemos Scarface, cujo reino
se encolhe das cidades que dominava ao quarto ondeé encurralado, os cientistas
que não ousam deixar a cabana por medo d'A Coisa; quer nos lembremos como os
pilotos envolvidos no campo pela neblina escapam às vezes para as montanhas (OnlyAngelsHaveWings), como Bogart escapa
para o mar, do hotel onde vagava impotente entre o porão e seu quarto (ToHaveandHaveNot); quer reencontremos o
eco burlesco destes temas em Ball ofFire,
onde o gramático se evade do universo hermético das bibliotecas para os perigos
da cidade, ou em Monkey Business,
onde as fugas traduzem os acometimentos de juventude (como I was a Male War Bride retoma em outro registro o tema do
itinerário) – sempre o espaço exprime o drama; as variações de cenário modelam
a continuidade do tempo. O passo do herói traça as figuras de seu destino.
A monotonia não é mais que uma máscara:de lentas e profundas maturações,
se esconde um progresso obstinado, as
conquistas feitas passo a passo sobre o solo e sobre si ao mesmo tempo – até o
paroxismo. Aqui a lassitude como instrumento dramático – a exasperação de
homens que se refrearam por duas horas, que pacientemente condensaram ante
nossos olhos a cólera, o ódio ou o amor, e eis que os liberam bruscamente, tal
como pilhas lentamente saturadas que por fim emitem uma faísca.O sangue-frio
exaspera o calor de seu sangue; a calma a qual eles se aplicam nos força a
sentir sua emoção, a partilhar o tremor secreto de seus nervos e de sua alma -
até que o copo transborda. Um filme de Hawks muitas vezes possui a mesma sensação
de uma espera ansiosa pela queda de uma gota d'água.
As comédias dão a essa monotonia outra face:a repetição substitui o
progresso, como a retórica de Raymond Roussel substituindo a de Peguy; os
mesmos feitos, retomados vezes sem fim, agravados poruma persistência maníaca,
uma paciência de obcecado, turbilhonam sem controle, como se a mercê de um
maelstrom ridículo.
Que outro gênio, mesmo mais tomado pela continuidade, poderia ser mais apaixonadamente
interessado nas consequências dos
atos, às relações que os unem; suas influências, suas repulsões, suas atrações
constituem um universocontínuo e coerente, universo Newtoniano onde se impõe a
lei da gravitação universal e o sentimento profundo da gravidade da existência. Os gestos do homem são pesados e medidos
por um mestre preocupado com as responsabilidades dos mesmos.
A medida desses filmes é a inteligência, mas uma inteligência
pragmática, aplicada diretamente ao mundo sensível, e que alcança a eficácia mediante
o ponto de vista preciso de uma profissão ou de qualquer forma de atividade
humana às voltas com o universo e ansiosa por conquistas. Marlowe em The Big Sleep pratica uma profissão
assim como um cientista ou um piloto; e quando Bogart aluga seu barco em ToHaveandHaveNot, quase não olha para o
mar, menos preocupado com a beleza das ondasque com a dos passageiros; todo rio
foi feito para ser atravessado, todo rebanho para prosperar e ser vendido pelo
preço mais alto. Mesmo sedutoras, mesmo amadas, as mulheres devem aderir à
busca.
É impossível evocar adequadamente ToHaveandHaveNot
sem imediatamente relembrar da luta com os peixes que abre o filme. O universo
não pode ser conquistado sem conflito, e este é o ambiente natural dos heróis
de Hawks: combate corpo-a-corpo, lutas calorosas, que enlaçamento mais estreito
pode-se esperar com outro ser? Assim o amor existe mesmo com aperpétua oposição;
é um duelo incansávelonde o perigo constanteos intoxica da evidência do próprio
sangue(The Big Sleep, Red River). Da
luta nasce a estima - essa admirável palavra que compreende de uma vez conhecimento,
apreciação e simpatia; o oponente torna-se parceiro. Mas que desgosto se é
preciso combater um inimigo que a isso se recusa;Marlowe, tomado de uma
amargura repentina, precipita os eventos e se apressa em levá-los aos seus fins.
A maturidade cai bem a esses homens reflexivos, heróis de um mundo
adulto, muitas vezes quase que exclusivamente masculino, onde o trágico reside
nas relações pessoais. A comédia vem da intrusão e confrontação de elementos
estranhos, ou de mecanismos que lhes tiram o livre-arbítrio - essa liberdade de
decisão pela qual um homem se exprime e se afirmaem seu ato como no ato de
criar.
Não quero parecer estar louvando aqui um gênio a frente de seu tempo;
mas a evidência de suas ligaçõesao nosso século me impede de articular
isso. Prefiro, em vez disso, apontar
como, se se atém às vezes à pintura do derrisório e do absurdo, Hawks se aplica
antes a dar um sentido e um gosto de viver a esses fantasmas e lhes abençoar
com uma grandeza insólita, de alguma nobreza a muito tempo secreta; como ele dá
à sensibilidade moderna uma consciência clássica. Red River e OnlyAngelsHaveWings
não reclamam outra filiação que não a deCorneille; a ambiguidade, a
complexidade são privilégios dos mais nobres sentimentos, que alguns creem
ainda como monótonos, ainda que sejam mais rapidamente exauridos os instintos,
as barbáries, as razõesdas almas cruas - eis o porquê dos romances modernos
seremchatos.
Finalmente, como poderia omitir a menção dessasadmiráveis introduções,
em que o herói se estabelece por sua duração com uma fluida plenitude. Sem
preliminares, sem artifícios de exposição; uma porta abre, e lá está ele logo
no primeiro plano, a conversação começa e nos familiariza discretamente com seu
ritmo pessoal; depois desse instante onde nós o surpreendemos,como poderíamos
deixá-lo, companheiros de sua viagem, que se desenrola tão certa e regularmente
como o filme através do projetor. Ritmo de uma marcha assim flexível e
constante como a dos alpinistas que partem como passo firme e o conservarãoassim
através das trilhas mais ásperas, até o final dasmais longas etapas.
Assim, desde essas primeiras pulsações, não estamos somente certos de
que os heróis não nos deixarão de modo nenhum, também sabemos que manterão ao excessotodas
as suas promessas;não fazem parte da raça dos covardes nem dos indecisos: nada
pode com efeito se opor à admirável obstinação, à tenacidade dos heróis de
Hawks; uma vez a caminho, continuarão até o fim de si mesmose do que
prometeram,por uma forma extrema da lógica, venha o que vier; o que começou tem
de ser terminado. Pouco importa se os heróis foram no começo envolvidos contra
sua vontade; ao perseguir, ao alcançar seus fins, provam sua liberdade e a
honra de chamar-se homens. Para eles a lógica não é alguma fria faculdade
intelectual, mas a coerência do corpo, a harmonia e a continuidade de seus
atos,a lealdade a si mesmos. A força da vontade garante a unidade do homem e do
espírito, atadosnaquilo que tanto justifica sua existência como lhes dá seu
significado mais alto.
Se é verdade que a fascinação nasce dos extremos e de tudo aquilo que ousa
o excesso, e que a audácia se chama assim grandeza - então segue-se que tal
fascinação não desdenhaessas forças em marcha, que combinam à precisão
intelectual dos poderes abstratos os valores elementares dos grandes impulsos
terrestres, as equações às tempestades, numa afirmação da vida. Todo filme de
Hawks não oferece senão antes de tudo à beleza esta afirmação tranquila e
certa, sem retorno nem remorsos. Ele prova o movimento ao andar, a existência
ao respirar. Que o que é, é.
Jacques Rivette
(publicado originalmente na CahiersduCinèma
nº23, maio de 1953. Tradução livre a partir do texto original e da versão em
inglês presente em jacques-rivette.com)
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