domingo, 3 de agosto de 2014

O MOSAICO MORAL DE SIDNEY LUMET (FRAGMENTOS)


(Serpico, O Príncipe da Cidade, Q&A – Sem Justiça, Sem Lei, Sombras da Lei)

Quatro filmes, quatro protagonistas: Frank Serpico em Serpico, Danny Ciello em O Príncipe da Cidade, Francis Reilly em Q & A e Sean Casey em Sombras da Lei formam a aclamada tetralogia sobre a corrupção no Departamento de Polícia de Nova York. A classificação "policial", no entanto, é conceitualmente equivocada. Lumet trabalha numa chave muito próxima ao que cada um de nós conhece como ambiente de trabalho. Seus filmes são dramas, porque envolvem os personagens com os dilemas morais a que eles têm que se debater para ficarem em paz com suas consciências. Mais do que qualquer classificação que só agrada aos donos de locadoras, interessa a Lumet o quanto se perde em cada uma das escolhas feitas pelos protagonistas. São quatro, como já vimos, mas na verdade são um só: um homem que usa de sua posição, alta ou não, dentro do sistema policial de Nova York para tentar desamarrar o forte esquema corrupto que se montou. Poucas balas, poucas perseguições. Muitas dúvidas e conversas. Assim vivem os protagonistas desses filmes. Todos são reencarnações do mesmo Frank Serpico vivido por Al Pacino, até chegar ao mais acabado herói lumetiano: o Sean Casey feito por Andy Garcia em Sombras do Mal. 

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Nota-se também a evolução do herói lumetiano. Frank Serpico é ingênuo. Acha que pode limpar o sistema policial sendo honesto. Briga com quem está a sua volta, é incompreendido, luta como se fosse um poderoso delegado, mas é apenas um patrulheiro de rua (mesmo quando é promovido a detetive). Danny é um detetive de certo respeito, mas que não consegue dormir por crises de consciência. Aprendeu que deve privilegiar os parceiros, mas não sabe que, quando resolve implodir a corrupção reinante, vai prejudicá-los, mesmo que não queira. Francis Reilly é assistente do promotor. Tem poder o suficiente para enfrentar os corruptos. Mas sente que seu pai, um respeitado e falecido policial, poderia ter seu nome manchado se tudo viesse à tona. Sean Casey chega a ser eleito Promotor de Justiça, mas mesmo assim sente-se incapaz de ir ao fundo do problema. E se ele não pode, ninguém mais pode. A série termina em tom mais pessimista do que começara. Para Lumet, a engrenagem não pode ser detida. Não haveria polícia, não haveria justiça. 

Mas Lumet, como já dito, preocupa-se muito mais com o interior de seus personagens. Em como seus heróis continuarão vivendo depois do fracasso de seus ideais. Nesse sentido, os quatro filmes vão adquirindo ares cada vez mais sombrios. De um abandonado Frank Serpico, exilado com seu cachorro, a um cético Sean Casey, cuja pequena nódoa no currículo parece ter aberto um enorme buraco em sua consciência, a ponto de ele não ver mais futuro algum em uma busca por honestidade no combate ao crime. De Danny Ciello sem saber onde enfiar a cara por ter sido desprezado em público por um pupilo a um Francis Reilly catatônico e desesperançado por ter descoberto que o próprio pai fazia parte do esquema que ele tentava desmontar.

Filmes desiguais. Serpico é mais pretensamente poético, mas é limitado por um personagem que parece viver em outro mundo. Lumet dirige o filme com segurança, e o protagonista chama atenção por ser muito hippie, num mundo onde os hippies já não tinham o mesmo espaço. Mas é um ser sem a menor ambigüidade, o que torna mais difícil nossa adesão à sua causa. O Principe da Cidade é o melhor deles, apesar de seus excessos. Pesam contra aqueles dizeres, tirados do caso real (que imprimem um traço documental ao filme, ao mesmo tempo em que procuram a poesia a qualquer custo), alem de uma certa ingenuidade do protagonista (resquícios de sua encarnação como Frank Serpico). Mas é o que tem o melhor trabalho de câmera, e o mais bem enquadrado de todos. Lembra o Lumet inicial de Doze Homens e uma Sentença, onde o quadro era pensado de acordo com a influência que cada personagem exercia no outro. 

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O que torna ainda mais rica a experiência de rever a série é que, assim como seus protagonistas, também Lumet aperfeiçoou seu ponto de vista, aprimorou seu método em direção a uma economia de informação que fez muito bem aos filmes. Percebe-se o quanto os erros de Q & A foram necessários para Sombras da Lei. E o quanto O Principe da Cidade tem de resposta a Serpico. Dois protagonistas de origem italiana, nos dois primeiros filmes, deram lugar a dois de origem irlandesa, nos filmes seguintes. Um italiano que não consegue se relacionar com as mulheres (Serpico), em parte por sua obsessão incontida pela honestidade a qualquer custo, um irlandês que pode perder a mulher de sua vida por não saber lidar com seus próprios preconceitos (Q & A). Outro italiano que tem a mulher sempre a seu lado, mesmo nas escolhas erradas, mesmo quando, contrariando a vontade dela, segue num jogo perigoso e que pode descambar na traição (O Príncipe da Cidade), outro irlandês (Sombras da Lei) que conhece a mulher da sua vida, que segue a seu lado confiante e tolerante, apesar de trabalhar para um antigo rival (advogado de defesa, destinado a proteger criminosos). Evolução dos personagens como resultado do estudo do tema. Obstinação do diretor em aperfeiçoar as idéias de um de seus filmes mais famosos (Serpico).

Frank Serpico não tem parceiros, não faz amizades porque desde o início vai contra o esquema de corrupção dos policiais. Danny Ciello cria uma irmandade entre os policiais, principalmente com seu parceiro Gus Levy (judeu, como Lumet, e o mais forte como defensor de seus princípios de camaradagem), mas trai essa irmandade, por ingenuidade, por não perceber, apesar de todas as evidências, onde daria sua vontade de cooperar com o temido "Internal Affairs". Francis Reilly parece não ter amigos, a não ser um velho policial que agora trabalha na corregedoria, e que lhe explica os meandros da justiça e dos trâmites policiais. Seu pai morreu, e a pessoa mais sensata e passível de lhe ofertar uma sincera amizade é o poderoso traficante vivido por Armand Assante, dono temporário do coração de sua eterna amada. Quando não tinha forças para reconquistá-la, combatia a corrupção policial. Quando se viu sem forças para combater a corrupção policial, correu de novo para a mulher de sua vida, beneficiado pela morte do traficante. 

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Sérgio Alpendre
(Texto na íntegra: 
http://www.contracampo.com.br/70/mosaicomoral.htm)

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