quinta-feira, 28 de agosto de 2014

POLÍCIA


Police, 1985
Logo em sua sequência inicial, Polícia nos faz lembrar de seriados televisivos recentes, em especial o aclamadoThe Wire, produzido pelo canal HBO entre 2002 e 2008. O estilo seco e direto impresso nesta obra por Maurice Pialat não encontra muitos paralelos no gênero em seu tempo, mesmo entre exemplares de polars (policiais) franceses surgidos a partir da década de 70, que por costume são ainda mais agressivos e politicamente incorretos do que os modelos made in USA mais famosos e imitados (Perseguidor Implacável, Operação França). Fazendo uso de uma tática que se tornaria padrão na televisão duas décadas mais tarde, Pialat investe com afinco nos personagens, tratando-os como seres de carne e osso, ao invés de perder tempo e repetir todo o procedimento padrão neste tipo de história – policiais de um lado e bandidos do outro, brigas com superiores, o conflito da moral e da ética…
Partindo de uma ideia original de Catherine Breillat (do período em que ela ficou quase dez anos sem dirigir um único filme), Polícia trabalha com um realismo brutal, onde policiais e bandidos apresentam inúmeras facetas, mesmo quando fazem aquilo que se espera deles. O Inspetor Mangin (Gérard Depardieu) pode perfeitamente prender e fichar um suspeito por pura intuição ou desejo, apesar da dúvida que acomete a vítima do crime, sem qualquer condenação posterior para si. Também é capaz de assediar sexualmente ou tripudiar de uma agente em treinamento, sua possível superior em pouco tempo, sem problema algum. Mais tarde, evita entrar em conflito com uma figura que agrediu a mesma agente na rua, talvez porque não seja inteligente desafiar este homem misterioso.
Se os policiais ultrapassam a linha imaginária que separa a atitude policial do uso abusivo do poder, os bandidos por possuírem ligação familiar ou raízes em comum, demonstram um padrão mais elevado de comportamento a despeito de suas atividades ilícitas. Vão preferir o diálogo à violência, menos quando um membro menor do grupo age como informante para a polícia a fim de abrandar sua pena. A sentença para este soldado desonrado só pode ser a morte. Quem transita entre os dois grupos é o advogado Lambert (Richard Anconina), amigo pessoal de Mangin e que tambpem mantém laços de confiança com quadrilha de traficantes de drogas, pois afinal, ele é um advogado honesto que faz o que sua profissão manda e com isso aumenta a proximidade dos dois mundos.
Quase nenhum dos criminosos traz um nome que o associe com suas origens árabes, com exceção de Noria (Sophie Marceau, em um de seus primeiros papéis), uma gaulesa de aparência caucasiana. Envolvida com os bandidos, ela se tornará o objeto de desejo de Mangin, um homem de atitudes ásperas quando travestido de oficial da lei, mas que esconde por trás disso um perfil de fragilidade e carência afetiva, demonstrado quando passa uma noite com uma prostituta que também lhe serve como informante. A câmera de Pialat evita mostrar o ato sexual, preferindo se afastar, captando apenas a insuspeita timidez ou falta de jeito de Mangin. Ele trata Noria com rispidez dentro da delegacia, chega até a agredir a moça ao interrogá-la, mas quando longe deste ambiente, passa a cortejá-la, deixando aflorar seus sentimentos para com esta mulher. Noria será o oposto de Mangin. De aparência frágil de início, ela apresentará depois como a femme fatale do filme, com uma personalidade manipuladora e gélida, contrastando com o vulcão de emoções que é o inspetor.
Trabalhando pela primeira vez com um típico cinema de gênero, Pialat foge das convenções, escolhendo focar o olhar no relacionamento dos personagens. A própria investigação em relação aos traficantes é deixada em segundo plano, não há cenas de perseguição de carro e um único tiro é disparado durante toda a duração do longa. Se hoje o público está acostumado com séries como The Wire ou The Shield, imagina-se o estranhamento que Polícia provocou na metade da década de 1980. Exemplares americanos iconoclatas vieram a seguir, comoViver e Morrer em Los Angeles e Homicídio, mas nada tão radical. Mesmo sem a certeza de que William Friedkin ou David Mamet tiveram a oportunidade de conferir Polícia em seu lançamento nos cinemas, podemos dizer que o gênero policial se divide em antes e depois da obra-prima de Pialat.
Leandro Caraça
(Texto original:
 http://www.revistainterludio.com.br/?p=3453)

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