sexta-feira, 17 de abril de 2015

There Will Be Blood

Nunca confie em quem tem mais de 30 anos. Esse poderia ser o lema da APJCC, Associação Paraense dos Jovens Críticos de Cinema. A associação é formada por membros de três grupos: os “Fellinianos”, fundado por Aerton Martins, o “Trashformação”, fundado por Max Andreone, e o Cine-Uepa, fundado pelos alunos de letras Miguel Haoni e Mateus Moura. A soma da idade de todos os membros da associação certamente não ultrapassa a de um quinto dos membros da APCC.

Essas jovens figuras estão por trás da primeira Sessão Maldita deste ano no Cine Líbero Luxardo, do Centur. Será às 21:30h deste sábado, dia 22 de março, com “Dragões da Violência”, de Samuel Fuller. Isso é que é começar o ano com o pé direito.

“Forty Guns”, título original do filme, é um dos melhores faroestes da grande década dos faroestes, a de 50, um dos melhores filmes rodados no falecido processo de CinemaScope, antes que o sistema Panavision monopolizasse o formato anamórfico, e uma obra-prima entre obras-primas na carreira de Fuller. Acha pouco?

Volta e meia, o Telecine Classic exibe outra obra-prima de Fuller, e um dos meus filmes favoritos, “Casa de Bambu”. Só que é exibido com as laterais mutiladas. Sem exagero, é melhor não ver o filme assim do que vê-lo apenas para que conste do seu currículo de cinéfilo. Os filmes que Fuller fez em CinemaScope são sobretudo sobre o formato do CinemaScope. Depois são sobre outras coisas. Se alguém lhe perguntar sobre o que é “Dragões da Violência”, não hesite em responder: “É sobre CinemaScope”.


O processo anamórfico do CinemaScope tinha problemas sérios de profundidade de campo, foco e distorção da imagem. Essas limitações eram ainda maiores em filmes coloridos. “Casa de Bambu”, de 55, foi rodado em cores. Em “Dragões da Violência”, de 57, Fuller usou o preto e branco e pôde ousar ainda mais no formato, nos dando enquadramentos bizarros em profundidade e supercloses que antecipam os que Sergio Leone nos daria na década seguinte.



Apesar da delirante criatividade barroca de Fuller, com seus inusitados ângulos de câmera e enquadramentos criando composições quase abstratas, a seqüência mais bela de “Dragões da Violência”, e uma das mais belas da história do cinema, é clássica e pura como um vitral. Fuller nos mostra um funeral. Ou melhor, não nos mostra um funeral.  

A primeira composição é, ao mesmo tempo, equilibrada e dinâmica, com a viúva repartindo o quadro em dois.


Uma lenta panorâmica para a esquerda, seguida de um travelling para frente, revela o único outro personagem da cena (se não levarmos em conta os cavalos).


O travelling termina enquadrando o personagem, que canta em homenagem ao morto.

Fuller corta para um plano ainda mais próximo do cantor.


Depois volta para o plano inicial (não precisaria ter cortado, mas o corte não é intrusivo e segue os parâmetros da continuidade clássica).


Outro travelling, agora para trás, e outra panorâmica, agora para direita...


...e a seqüência termina quase como começou, e o quase é importante, com a viúva mais próxima de nós, dominando o quadro.


Sem mostrar o enterro, sem sequer mostrar a cova, e com apenas dois personagens em cena, Fuller nos dá um dos mais memoráveis funerais da história, aproveitando ao máximo a possibilidade de encenação lateral do CinemaScope. Não tente fazer isso em casa.


Não há nada de vergonhoso em não ter visto um filme de Fuller. São difíceis de encontrar. Vergonha é ter a oportunidade de ver um filme dele no formato original e não aproveitar.

Texto extraído de: http://www.orm.com.br/blogdecinema/capa/?mes=3&ano=2008

4 comentários:

  1. Quero perseverar na questão que tentei colocar ao final do filme “Dragões da Violência” de Samuel Fuller. É uma questão sobre o gênero “western”. Pelas respostas suscitadas, sei que falhei miseravelmente. Tento de novo.

    Primeira pergunta:
    Como compreender os rótulos “sessão da tarde” e “momento disney” aplicados a filmes do gênero “western”? Eu só entendo estes rótulos como alusivos ao adjetivo “pacífico”. São filmes que “entram” para o grande público (eu incluída) como pacíficos. Assim: o mocinho é sempre ambíguo e o bandido é sempre inequivocamente mal - eles se confrontam - there is no blood - a morte é súbita e indolor (do que já vi, só nos Imperdoáveis o moribundo tem tempo para pedir água – e Clint grita que lhe dêem água) - o cadáver é recolhido (muito às vezes é exibido como uma espécie de recado com endereço certo) - o mocinho parte (nem sempre com a mocinha) - the end. Sempre previsível, sempre surpreendente, mas sempre pacífico.

    Segunda pergunta:
    Como é possível? Como é possível que as paixões mais violentas do amor e do ódio se desdobrem tão disfarçadamente sob os olhos de tanta gente? Quando falo em TV, falo de um tempo em que dramas considerados “verdadeiros” e “pesados” só eram exibidos à noite, quando as crianças já estavam na cama. Naquele tempo (existiu, podem crer), o western era liberado para a sessão da tarde. Antes da TV, passava nas matinès de domingo, reservadas para a gurizada. Como assim?...

    De que decorre a terceira pergunta:
    Qual é a grande trapaça do western? Uma trapaça que, para mim, dobra mesmo Samuel Fuller. Explico: A carne que pulsa em “A Dama de Preto” e em “Portal da China” não pulsa simplesmente: lateja. A mesma carne se transmuta em alma em “Dragões da Violência” e nem o título me convence de que haja violência ali, embora eu saiba dela o tempo todo – violência de amor e violência de ódio. Atribuo este fenômeno de “desencarnação” ao gênero – já que nem me passa pela cabeça atribuí-lo a Fuller.

    O que me leva à quarta e última pergunta:
    Supondo que não se trate simplesmente de mediocridade dos enganados (o que é sempre possível, mas também deixa a discussão muito barata), que é que faz com que alguns sejam imunes à trapaça: estes que não se deixam enganar e têm acesso direto à alma feita de carne humana sangrenta, mesmo no western mais “inocente”?

    Ensaiei uma reflexão pelo viés da poesia e dos poetas...
    Mas penso que a resposta tem a ver com mitos e oráculos...
    Não sei. Não sei ainda. Talvez nunca venha a saber.
    De todo modo, nem toda pergunta pode ser respondida.
    O que não impede, a ninguém, de querer saber.


    Vera Lúcia de Oliveira e Silva, abril 2015

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  2.  Se há trapaça no “western”, como ela é feita? Qual a estrutura da magia?

    Ocorre que, todos nós, sabemos fazer a trapaça em jogo: nós sonhamos. Nos sonhos, nós nos apresentamos tudo aquilo que não toleramos – só que de um modo aceitável, porque profundamente disfarçado e escamoteado. Às vezes, em forma prazenteira; às vezes, nem tanto, pois há sonhos de angústia. De todo modo, sempre realizando um desejo – o que não significa satisfazê-lo.

    O trabalho do sonho é exatamente a montagem de um filme que projetamos na tela adormecida, no qual somos não só o autor, como toda a equipe técnica e todo o elenco. Os mecanismos que Freud denominou condensação e deslocamento, e Lacan renomeou metáfora e metonímia, pertencem ao nosso processo primário de pensamento e operam livremente no sonho, quando a censura também dorme. A censura, acordada, vigia para que nenhum pensamento incompatível com a unidade idealizada pelo Eu chegue à consciência. Para não acordar a censura, para poder pensar o impensável e para poder continuar dormindo, sonhamos.

    Sendo assim, o “western” seria o sonho materializado, tornado imagem que se pode partilhar com o respeitável público: amor e ódio podem explodir, sem que a gente seja ameaçado de explodir junto.

    Interessante que, mesmo sabendo disso, estranhei muito uma frase de Manuel de Oliveira ouvida, se não me engano, em Vale Abraão: o mundo do sonho é o mundo mais hipócrita que há. Causou-me estranhamento quando a ouvi, vejo agora seu porquê. Se hipócrita quer dizer dissimulado para enganar, Oliveira está certo. O sonho usa da hipocrisia para poder dizer a verdade do desejo.

     De onde vem o caráter pacífico do “western”?

    Penso que vem da lei: no que a lei exige de cada um de nós a renúncia a nossas tendências agressivas, ela, instituída a partir do consentimento coletivo, pacifica. Lá, onde estava a barbárie, deve advir, pela lei, o laço social e o estado de direito.

    Se isso se dá na comunidade humana, é porque algo disso ocorre na história de cada indivíduo – e vice-versa. Entretanto, como nenhuma das posições psíquicas é abandonada de vez e para sempre, subsistem sempre resíduos perturbadores da ordem ambicionada.

    O “western” vem representar tal estado de coisas no espaço cênico. Transgressores se erguem com máximo descaramento, desorganizam, ameaçam, destroem e matam. A própria autoridade constituída, o xerife, ou se mostra fraca diante dos poderes insurgidos; ou adere a ele pela corrupção. A ameaça do caos é total... até que...

     ... surge o herói.

    Quem é o herói? Um homem forte. Forte porque carrega em si, em forma explícita, a violência – só que sob controle. Seus pendores agressivos não foram recalcados e despachados para o Inconsciente (onde permanecem vivos e ativos), ao contrário, foram acolhidos na consciência e ali condenados. Ele realiza o preceito máximo da psicanálise, ao tornar consciente o inconsciente: não se pensa bom e se horroriza com o mal - ele sabe do mal em si e o recusa. O que lhe dá, sobre os perturbadores da ordem social, a autoridade de um sol no firmamento – e não o brilho pálido de uma estrela no peito.

    Quando vemos um filme de faroeste, nós sabemos que ele virá. Quanto maior a desordem provocada pelos arruaceiros; quando se encarniça sem limites o poder do mal; quanto mais se avizinha o pior; mais perto sabemos que está o seu advento, trazendo a justiça, onde o direito não foi suficiente. Nós esperamos o redentor e nos alegramos com a sua chegada (que nem sempre coincide com a presença do herói em cena). Este é um dos prazeres, não o único, que vivemos com o faroeste.

    Como crianças pedindo que se conte a mesma história vezes sem conta, nós buscamos a mesma história vezes sem fim. Nós vemos faroestes em série, primeiro porque queremos re(vi)ver o caos (não vamos posar de bonzinhos!), mas assegurados pela certeza da redenção. Segundo, porque nós queremos a vitória da lei, porque ela é pacificadora. Ela é pacificadora em nós.


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    1.  Tornar consciente o inconsciente

      Permanece um enigma: o que leva muitos a se entregarem à fruição do prazer catártico e pacificador do faroeste, sem saber nem como nem por que ele se instala, enquanto outros “sacam” o Real em jogo. Estes que percebem a trama oculta e que amplificam seu próprio prazer a partir dessa percepção, como eles fazem a mágica?

      Sem estes oráculos, eu própria veria faroestes até a morte, sem nunca me perguntar de onde me vem o prazer que eles me produzem (aliás, eu devia ter escrito todas estas reflexões em primeira pessoa, pois é ambição desmedida desejá-las universais).

      Talvez os oráculos sejam, eles próprios, partícipes da natureza do herói. Talvez sejam capazes de desmanchar o trabalho de ocultamento e distorção, próprio da elaboração onírica, através de outro trabalho que lhe é o avesso – a interpretação do sonho.

      Só eles mesmos, um por um, poderia responder.


      Vera Lúcia de Oliveira e Silva
      Abril 2015

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  3. É para se refletir que o Western já existe na história onde a literatura registrou com muita invencionice muito antes do Cinema existir , a cruel história da epopéia do nascimento de uma nação ; o EUA . nos anos 70 o Historiador Dee Brown escreveu " enterrem meu coração na curva do Rio " onde ele reconta sob a ótica dos Sioux as patifarias do governo americano com as inúmeras quebras de acordo , assassinatos e massacres dos Indios . em 1970 o filme o Pequeno Grande Homem de Artur Penn faz esse revisionismo afinado com o Livro e décadas antes de Dança com Lobos , e ainda cito quando é preciso ser homem de Ralph Nelson tbm de 1970 , são dignos Westerns Pró Indios assim como por exemplo Renegando meu sangue do Fuller , Flechas de fogo de Delmer Davis ( o primeiro Cineasta pró Indio ) e John Ford na sua velhice inserindo dignidade na tragédia dos Indios em o crepúsculo de uma raça .existe uma excelência no Western principalmente em Ford , Hawks , Anthony Mann e naqueles que esmerilharam o gênero e a censura como Leone e Peckinpah . pra mim esses são os maiores especialistas do gênero . vale citar Ritt , Fuller , Huston , Eastwood , Siegel e outros até Alex Cox ( primeiro Westrern Punk . a caminho do inferno nos anos 80 e Jim Jarmusch com o Western espritual Dead Man nos anos 90 e claro , nos anos 70 Jodorowsky com seu surrealista El topo . obs : também tem um Livro importante " The Westerners " ( o Faroeste ) do mesmo Dee Brown que remonta a história do longinquos Oeste Selvagem antes dos primeiros pioneiros , a gênesis de tudo , o primeiro contato com os Indios . apenas divagações :) abs Haoni

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